Boletim OCI – 1 – Textos
Flory Kruger (EOL)
fkruger@datamarkets.com.ar
Nosso veículo de difusão nos apresenta, neste Nº 1, uma série de breves, mas contundentes trabalhos, ordenados em três partes diferentes:
Em “A priori”, Patricia Moraga descreve como servir-nos do acontecimento de corpo para ler os sintomas sociais. Por sua vez, Rômulo Ferreira da Silva demonstra como, tanto para Freud como para Lacan, o ódio faz parte da estrutura do ser humano.
“Conectando”, a segunda parte, abre um espaço original do nosso boletim, já que os quatro trabalhos trazem um olhar a partir da psicanálise sobre expressões da cultura, tais como a literatura, o cinema, o teatro e a performance. Bernardino Horne comenta um texto de Raduan Nassar, Um copo de cólera; Lorena Grañas se refere a um filme que faz parte da trilogia da morte, Amores brutos; e temos a peça de teatro Tio Vânia, de Tchékhov, por Felipe Maino, bem como a performance Campo Minado, por Manuel Zlotnik, que retoma em seu trabalho, a partir da obra de Lola Arias, o tema da guerra das Malvinas.
E, finalmente, “Linkeando”, um vídeo, Viniloversus, música, imagens sugestivas que acompanham e complementam o que nossos colegas nos transmitem em seus interessantes escritos.
Um OCI 1 a que vale a pena recorrer!
A DIGNIDADE DO SINTHOMA COMO LAÇO
Patricia Moraga (EOL)
patricia.f.moraga@gmail.com
Lacan lamentava que seu ensino não tivesse as consequências na sociedade que ele queria¹. No início dos anos 70, ele propôs ler o social servindo-se do sinthoma como sendo o que enlaça as três rodinhas de barbante (RSI) e sustenta a relação com o Outro sexo². Como utilizar essas ferramentas para ler as diferenças entre o movimento “Indignados” (2011) e “Maré de lenços brancos” (2017)³, a fim de abordar a indignação como paixão de um corpo político e o lugar da dignidade na psicanálise?
O âmbito público determina o que não pode ser dito e o que não pode ser mostrado. O silêncio dos meios de comunicação maciça diante da iminente liberação de genocidas mobilizou a população argentina a rejeitar a falha da Suprema Corte da Justiça, que beneficiava os condenados por crimes contra a humanidade cometidos durante a ditadura militar (1976-1983). O grito ”Nunca mais!” foi um acontecimento de corpo político que afirmou a vida contra o silêncio da pulsão de morte.
Essa mobilização se distingue daquela dos “Indignados”, nascida entre os jovens que têm estudos, porém não têm trabalho, excluídos do sistema, que se tornou transgeracional, sem líderes e sem demandas específicas e que é contra a política que prejudicava as pessoas em benefício da elite financeira. Ela foi um grito do sujeito contra o Outro infernal que o deixava sem lugar no mundo⁴.
Ambos os casos evidenciam como o corpo afetado pela linguagem está tomado pelos discursos. As paixões têm a ver com o corpo e com o gozo (o do próprio corpo ou o da fantasia) e os conecta com a linguagem. A indignação toca a distinção entre dignidade e indignidade. Em Lacan, a dignidade sempre se refere ao singular, mas essa conexão não é evidente se colocamos o problema do gozo autista do sintoma. Para ele, a sublimação eleva um objeto à dignidade da Coisa. Aqui a dignidade se equipara com a anulação do gozo, que é idealizado e negativado pelo significante. Quando o gozo é elevado à dignidade da Coisa e não é rebaixado à indignidade do dejeto, ele é sublimado, socializado⁵.
O desejo destaca um objeto entre todos, não equiparável aos demais, singular. Esse objeto supervalorizado tem a função de “salvar nossa dignidade de sujeito”, nos tornando “algo diferente de um sujeito submetido ao deslizamento infinito do significante”, algo “único, insubstituível”⁶. E Lacan localiza a dignidade do sujeito no objeto a, causa do desejo: o singular de uma causa insubstituível. Assim, só fazemos luto por aquele cujo desejo causamos.
O gozo autista do Um torna problemático afirmar a dignidade do sintoma. Se ele se basta a si mesmo, esse gozo é indigno. Como fazer laço com ele? Miller acrescenta o escabelo ao sinthoma, é sobre ele que o falasser se alça para “elevar-se à dignidade da Coisa” e o situa ao lado do gozo da palavra, do gozo fálico e do sentido⁷. O sinthoma é gozo real do corpo e exclui o sentido. Sua dignidade nasce ao fazer do sinthoma um escabelo no laço com o Outro.
Os movimentos “Indignados” e “Maré dos lenços brancos” nos ensinam como se servir do acontecimento de corpo para ler os sintomas sociais. No primeiro caso, a indignação surge quando a dignidade do sinthoma é rechaçada e o singular é esmagado pelo universal. No segundo, a dignidade do sinthoma faz laço sem fazer massa.
Só existe política de corpos falantes. Quando existe silêncio na cidade, é a dignidade do sinthoma como laço que está afetada, e, assim, a segregação e a violência proliferam.
Tradução: Glacy Gorski
Revisão: Paola Salinas
Notas
¹ MILLER, J.-A. “La utilidad directa”. Disponível em:
www.eol.org.ar.
² LACAN, J. O seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2007, pp. 21-98.
³ N. A.: No dia 11 de maio de 2017, milhares de pessoas se mobilizaram com lenços brancos (símbolo de Mães e Avós da Praça de Maio) contra a liberação de genocidas argentinos. N. T.: Lenços brancos faz referência aos panos brancos (remetendo às fraldas), que as mães e avós da Praça de Maio usavam na cabeça e que tinham a inscrição do nome de seus filhos e netos desaparecidos. Lembro que, na Argentina, as mães seguem uma tradição de guardar fraldas como lembranças de seus filhos. O grupo de mães da Praça de Maio deu início a um movimento de repúdio à ditadura e de luta pelos direitos humanos, focando nos filhos e netos desaparecidos. Esse movimento teve uma grande adesão e foi reconhecido internacionalmente como uma das principais instituições civis de luta contra os crimes cometidos pelas ditaduras, recebeu vários prêmios e teve indicação ao Prêmio Nobel da Paz.
⁴ LAURENT, É. O avesso da biopolítica. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016, pp. 211 e seguintes.
⁵ MILLER, J.-A. “A salvação pelos dejetos” In: Correio. Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, n. 67, dez. 2010, pp .19-26.
⁶ LACAN, J. O seminário, livro 8: A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1992, p. 173.
⁷ MILLER, J.-A. “O inconsciente e o corpo falante”. Scilicet. O corpo falante. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2015,
pp. 28.
O ÓDIO ESTRUTURANTE¹
Rômulo Ferreira da Silva (EBP)
romulofs18@gmail.com
No texto “A negativa”, de Freud, podemos localizar o mecanismo da Austossung, da expulsão, como o ponto de partida da configuração do ser.
A partir do princípio do prazer, o que é expulso por ser desagradável estabelece-se de forma radical no dito do sujeito “isso não sou eu”. Por outro lado, o que se apresenta como experiência prazerosa é introjetado como sendo ele.
Ocorre que o elemento expulso foi experimentado pelo ser vivente e o marcou como modo de satisfação sem compromisso com o prazer. É, portanto, o gozo que se apresenta como paradoxal, que diz respeito ao sujeito e foi por ele radicalmente rejeitado. Ou seja, “aquilo que é mau, que é estranho ao ego, e aquilo que é externo são, para começar, idênticos”².
Essa operação da constituição do sujeito se dá miticamente sem a interferência do simbólico. Trata-se da participação do imaginário e do real na constituição de um corpo que goza, subtraído do alcance do simbólico. Como tal, permanece no real porque o imaginário não é capaz de estabilizá-lo.
Lacan, em sua conversa com Jean Hyppolite sobre a Verneinung de Freud, em 1954, nos esclarece “que é assim que se deve compreender a Einbeziehung ins Ich, a introdução no sujeito, e a Austossung aus dem Ich, a expulsão para fora do sujeito. É essa última que constitui o real, na medida em que ele é o domínio do que subsiste fora da simbolização”³.
Podemos concluir que o ódio advém do resultado da Austossung, na fenda entre real e imaginário, e é estruturante para o sujeito.
Lacan dará várias orientações para entendermos o ódio a esse gozo que não está conforme, que não segue o modelo do Ideal do Eu, que, por sua vez, oferece ao sujeito sua melhor versão.
Esse gozo que se instaura fora da abordagem fálica não pode ser negativizado e se apresentará ao sujeito para sempre, seja como o gozo suplementar, seja como o gozo do Outro, seja como o gozo feminino, que, não-todo, escapa a qualquer tentativa de conformidade.
É o gozo externo ao sujeito que retorna como o mais íntimo de sua existência.
A concepção freudiana sobre a constituição desse estranho mais íntimo orientará os desenvolvimentos dos últimos Seminários de Lacan, quando indica que a única maneira de abordarmos o real é pela via do imaginário, o imaginário puro desvinculado do simbólico.
No Seminário 20, Lacan apresenta a angústia como o que surge entre o imaginário e o real sem a intermediação do simbólico. É por isso que podemos apreender a angústia como o afeto que não engana. Ela é vivenciada sem os emaranhados dos significantes.
Constatamos na clínica que, para desangustiar um sujeito, é preciso introduzir algo do simbólico. O simples fato de dar lugar à fala pode gerar efeitos apaziguadores importantes.
Angústia e ódio se articulam por ambos estarem localizados na fenda entre o real e o imaginário. Podemos dizer que o afeto que não engana e a paixão do ódio são índices do real.
Porém, se é possível abordar a angústia oferecendo significantes que possam enredá-la em uma verdade mentirosa, diante do ódio não há o que dizer.
Ele exige a destruição do Outro em uma tentativa de fazer com que ele jamais tivesse existido.
É o sonho de uma solução final para o que não cessa de não se escrever. Quanto mais se elaboram estratégias para que esse real desapareça, mais ele ex-siste ao sujeito, apresentando-se como causa do ódio.
O único tratamento possível é poder imaginar, no sentido de dar uma imagem desvinculada do simbólico, que, para cada um, poderia bordear o ódio de si mesmo, inaugurado na sua existência.
Notas
¹ N. A.: Texto extraído da discussão ocorrida na EBP – Seção SP, em 26 de novembro de 2018, que contou com a apresentação do tema do IX ENAPOL, por Romildo do Rêgo Barros.
² FREUD, S. “A Negativa”. In: Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XIX. Imago. Rio de Janeiro, 1976, p. 297.
³ LACAN, J. “Resposta ao comentário de Jean Hyppolite”. In: Escritos. Jorge Zahar. Rio de Janeiro, 1998, p. 390.
ÓDIO PELA DESTRUIÇÃO DO FANTASMA FÁLICO
Sobre “Um copo de cólera” de Raduan Nassar
Bernardino Horne (EBP)
horneba@terra.com.br
Ele, um homem de cabelos brancos, relata seu encontro, sexual, a
Ela, uma amiga jovem.
O autor nomeia certos momentos da narrativa. Em “A chegada”, Ele chega à sua granja, Ela já o aguardava. Nessa e na próxima cena, ele se exibe com forte deleite narcísico. Diz: “…minhas mãos de dorso largo, que eram muito usadas em toda essa geometria passional, tão bem elaborada por mim…” e faz Ela gritar: “é este canalha que eu amo”.
Nos capítulos “O levantar” e “O banho”, Ele evita o sexo e aparece um tremor no absoluto controle fálico predominante. Se transformam, ele vai ficando criança; ela, maternal.
“O café da manhã” descreve uma cena pivô na passagem do amor ao ódio. Ele e a velha empregada preparam o café. Ela olha reclinada, parece dizer: “Eu não tive o bastante, mas tive o suficiente”. No próximo momento, assistiremos à falácia do brilho fálico que dominava o campo. De “não tive o bastante” translada o ódio às formigas. A destruição de seu fantasma gera um sentimento explosivo de cólera feito de rancor, que é uma mágoa profunda, ódio por uma ofensa que se repete. Um ressentimento. Ressonâncias do Real.
No final, em “O esporro”, acentua-se a distância dos corpos, no entanto, a pulsão escópica e a imagem tomam força. Seus olhos foram conduzidos por algo demoníaco a ver “um rombo na minha cerca viva”. Um estrago na alma. Enlouquece, grita, insulta as formigas e as chama de filhas da puta, etc. Quando vê a empregada e Ela, com sua “bundinha recostada no para-lama do carro”, sua cólera, incontível, faz derramar seu ódio sobre esta mulher. O ódio toma corpo da castração, da impotência e do desamparo – o que manda denegrir, humilhar e destruir Ela com um rancor que certamente tem raízes nas suas tripas.
O drama não toma proporções mais trágicas porque Ela responde com humor. Finalmente sobe no carro, grita “broxa!” e parte. Ele, chorando, diz: “fiquei como um ator em carne viva, em absoluta solidão sem plateia, sem palco, sem luzes, debaixo de um sol já glorioso e indiferente”.
Depois do final, aparece de novo o primeiro tema – “A chegada” –, só que, dessa vez, relata a versão de quando ela chegou à granja. Entra, Ele dorme. Seus joelhos quase tocando sua testa. Ela, envolvida por um sentimento de ternura, toma-o “para receber de volta aquele enorme feto”.
O Gozo é do Um.
Notas
¹ NASSAR, R.: Um copo de cólera. São Paulo: Companhia das Letras.
2014.
PARA MUESTRA, UN BOTÓN¹: “AMORES BRUTOS”
Sobre “Amores Brutos” de Alejandro González Iñárritu²
Lorena Greñas (NEL)
lorena.grenas@gmail.com
Amores brutos (México, 2000) inicia a chamada “trilogia da morte”, de Alejandro Gonzáles Iñárritu, em que um ambiente opressor, carências que atravessam as classes sociais e diversas transgressões instigam o desdobramento de paixões humanas nas quais o ódio tem um lugar preponderante e culmina em diferentes formas de violência.
“…Lembre-se de que todo dono se parece com seu cão”. El Chivo.
Alinhado com o argumento do IX ENAPOL³, o desenvolvimento das três histórias que compõem o filme transmite a precariedade dos laços como consequência do declínio do Nome-do-Pai e seu correlato, o imperativo de gozo feroz e obsceno, como as brigas de cães mostradas. Homo homini lupus!… Freud ressoa nas palavras do roteirista Guillermo Arriaga quando este diz: “O filme é uma visão do ser humano […] eu acredito que o ser humano é muito paradoxal e tem uma bestialidade à flor da pele. Só é preciso coçar um pouquinho, por isso a analogia com os cães”⁴.
O encontro com o real – uma batida entre dois automóveis – muda radicalmente a vida dos seus protagonistas e constitui o acontecimento nodal que enlaça as histórias paralelas.
A luta por causa de Susana entre Octávio e Ramiro dá conta do ódio como desejo de morte do rival no amor. É a mesma paixão que subjaz no conflito fraterno entre Luis e Gustavo. Para Valéria e Daniel, o projeto de uma vida em comum “feliz” se vê truncado pelo acidente… da mesma forma que a perna dela. Os pinos não se encaixam mais nos buraquinhos e a cólera faz sua emergência.
Para Valéria e Daniel, o projeto de uma vida em comum “feliz” se vê truncado pelo acidente… da mesma forma que a perna dela. Os pinos não se encaixam mais nos buraquinhos e a cólera faz sua emergência.
A escolha de Chivo, que vivia do lixo, sendo ele mesmo um rebotalho humano, permite-lhe recuperar sua dignidade e seu nome: Martín.
Os desafios que o ódio, a cólera e a indignação colocam para a psicanálise são ilustrados em uma cena perto do final. Chivo diz a Luis e a Gustavo: “Deixo vocês em suas casas e tomara que possam ajeitar suas diferenças […] ora, se não se entendem falando, deixo-lhes isto [uma pistola], para que se compreendam melhor”. Como manejar, então, para que a palavra recupere seu poder?
Tradução: Glacy Gorski
Revisão: Paola Salinas
Notas
¹ N. T.: Ditado popular, em espanhol. Segundo https://cvc.cervantes.es/lengua/refranero/ficha.aspx?Par=59279&Lng=0 significa que “não é preciso mostrar ou ensinar tudo, já que de um exemplo é possível deduzir facilmente tudo aquilo que ainda é preciso descobrir”.
² IÑÁRRITU, A. G. Amores brutos. Filme. México. 2.000.
³ IX ENAPOL. Argumento. “Ódio, Cólera, Indignação. Desafios para a psicanálise” https://ix.enapol.org/es/argumento-2/
⁴ Análise Semiótica de Amores brutos. Entrevista a Guillermo Arriaga. Evitemos banalizar a violência no cinema e na televisão. https://www.academia.edu/9918094/Análisis_Semiótico_Amores_Perros
TEMPOS DE GUERRA¹
Sobre “Campo Minado” de Lola Arias²
Manuel Zlotnik (EOL)
manuzlotnik@yahoo.com.ar
“Campo minado” é uma performance na qual seis ex-combatentes das Malvinas relatam sua experiência durante a guerra, de seu início ao fim.
A originalidade dessa performance está no fato de que, dos seis ex-combatentes, três são argentinos, dois são ingleses e um é um gurkha. Cada um dos protagonistas nos vai relatando como vivem, em sua singularidade, a guerra, desde como foram recrutados e como processaram o trauma até o final dos vencedores e vencidos.
Há claramente a presença do ódio enquanto expulsão do outro. Por um lado, os “sudacas”³; por outro lado, os “imperialistas”: a ilusão é que se matará aquilo que não se suporta do gozo encarnado no outro, e, no relato performativo dos protagonistas, o que se verifica é a impossibilidade de consegui-lo. Isso a obra nos mostra de um modo muito lúcido.
Quando já não podem sustentar seus ideais com dignidade, caídos do Outro, surge a indignação como afeto. Os argentinos, por um lado, abandonados nas mãos de Deus, sem recursos, enquanto as notícias e a euforia diziam o oposto – nesse momento captam a trama sinistra da qual são objeto –, e os ingleses, por outro, representando uma coroa imperial em decadência, dispostos a lutar contra um inimigo que chega vencido de antemão. Quem fica isento da indignação é o gurkha, que não é movido por nenhum tipo de ideal patriótico, é um simples mercenário que cumpre sua função.
É realmente muito interessante essa confrontação 35 anos depois. Poderíamos dizer que é uma confrontação sublimada em uma espécie de expressão artística, mas ainda assim continua sendo uma confrontação, enquanto argentinos e ingleses mantêm suas posições contrárias. Só que isso não os leva à luta até a morte no real, mas a uma disputa que agora se dá em uma performance artística.
Poderíamos localizar uma passagem de ódio à indignação e à obra, que finalmente permite restituir certa dignidade da singularidade de cada um dos protagonistas.
Como mensagem final, ficamos com a de que a guerra é o pior, mas não aponta um ideal ingênuo de paz e amor, no qual o pulsional não existe. Melhor dito, a mensagem de “Campo minado” é a de que a pulsão de morte é ineliminável; que a guerra, sim, é a pior forma de tratá-la; e a performance, ao contrário, nos mostra outro modo, muito mais dialético e sublimado, respeitando o modo sintomático de cada um.
Tradução: Flávia Machado Seidinger Leibovitz
Revisão: Paola Salinas
Notas
¹ N. A.: Título da obra de Pablo Suarez (1982), Óleo sobre tela, coleção particular.
² ARIAS, Lola. “Campo Minado”.leia mais
³ N. T.: optamos por conservar o termo “sudaca”, alusão a “sudamericanos”, por não ter correspondente no português que mantenha sua conotação pejorativa, transmitida pelo autor quando ao tratar de ódio, cólera e indignação, mantém o termo em seu aspecto depreciativo utilizado na Espanha para referir-se a sul americanos ou latino-americanos; termo também utilizado como insulto, para atribuir inferioridade ou incapacidade a alguém.
TIO VÂNIA, ENTRE O SER E O UM
Sobre “Tio Vânia” de Anton Tchekhov¹
Felipe Maino (NEL)
fmaino@uc.cl
“Tio Vânia”, obra em quatro atos. Reconhece-se Anton Tchekhov, seu autor, na preferência pelos furta-cores às disposições precisas. Assim, resulta uma peça excelente para entrelaçar sentimentos e afetos. “Noites e noites que não durmo de desgosto, de raiva”, lerão na boca de Voinitsky, o tio em questão².
A obra pode ser seguida na chave edípica: um homem, o tio Vânia, odeia um venerado professor e o culpa por seu fracasso; odeia-o também por ser quem goza das mulheres amadas. Erra dois tiros ao encará-lo por volta do final do terceiro ato. Ninguém se preenche com o que deseja, o que não impede que emerjam essas paixões que Lacan chamou de “paixões do ser”. Voinitsky exige assim do professor Serebriákov que este ressarça sua falta-a-ser, encontrando-nos aí com a definição de Lacan para essas paixões: “O que é assim dado ao Outro preencher”³.
A segunda chave de leitura nos aproxima da cólera. Trata-se desse fracasso da correlação esperada entre uma ordem simbólica e a resposta do real, entre cavilhazinha e buraquinho⁴. Apesar de, nessa obra teatral, encontrarmos o “ser ou não ser” de Hamlet, prevalece o golpe do real opaco ao sentido; nesse caso, para a Rússia rural de fins do século XIX. Essa dimensão é fundamental no teatro tchekhoviano, são as “paixões da alma” seu motor imóvel. A melancolia, o tédio e o mau-humor substituem os grandes acontecimentos, permitindo que palpite o real: o médico Àstrov, irritado pela exploração da indústria, mas incapaz de não explorar si mesmo; Serebriákov dissimulando seu exílio dessa cidade, que já não o reconhece; o sentir generalizado de frivolidade, de deslocalização; e Voinitsky, furioso em seu êxtase.
Esse é o tom da obra, que dissolve na iteração do Um os desejos do Ser. Mais Godot que Hamlet, ou Hamlet com Godot. Tio Vânia, ele próprio, qual litoral de onde se alça o ódio como esforço de semblante ante o encolerizante empuxo do real sem lei. E valeria a pena situar aqui uma ira especial, cara ao progressismo moderno: refiro-me ao spleen, que leva no tédio a marca do aborrecer.
Tradução: Maria Ruth Jeunon Sousa
Revisão: Paola Salinas
Notas
¹ TCHÉKHOV, A. “Tio Vânia”. In: Jardim das cerejeiras/Tio Vânia. Trad. Millôr Fernandes. Porto Alegre, LP&M Ed., 2009.
² LACAN, J. “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 633.
³ ______. O Seminário, livro 7: A ética da psicanálise. Ibid., p.
130.
BANDA VINILOVERSUS
Seria o rock uma expressão artística que alça a agressividade e a destrutividade a um lugar digno na cultura? Um tratamento sublimado da pulsão de morte, incluindo nisso, uma erótica?
Em “O mal-estar na civilização” (1930), Freud faz uma articulação entre pulsão de morte e Eros:
“Poder-se-ia presumir que o instinto de morte operava silenciosamente dentro do organismo, no sentido de sua destruição, mas isso, naturalmente, não constituía uma prova. Uma ideia mais fecunda era a de que uma parte do instinto é desviada no sentido do mundo externo e vem à luz como um instinto de agressividade e destrutividade. Dessa maneira, o próprio instinto podia ser compelido para o serviço de Eros, no caso de o organismo destruir alguma outra coisa, inanimada ou animada, em vez de destruir o seu próprio eu (self)”¹.
“O Ódio te queima, a vingança é parte do seu ser”. Assim começa a letra da música “ARES#NoDispares”, de uma das principais bandas venezuelanas de rock da atualidade, a Viniloversus.
Podemos conferir no link abaixo que “a arte pode servir como uma arma”, como defende o vocalista Rodrigo Gonsalves. No vídeo, a banda percorre Caracas, incluindo a casa do presidente, grafitando uma imagem que clama pela paz. Rock, desenho, grafite: atos subversivos diante da banalização da violência armada.
O rock, aí com sua potência agressiva, é uma metralhadora sublimada contra a face indigna da destruição.
Confira o vídeo
aqui
Notas
¹ FREUD, S. “O mal-estar na civilização” In: Ed. Standard
Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1980, v. XXI, p 123.