Boletim OCI – 4 – Textos
Ana Lydia Santiago (EBP)
analydia.ebp@gmail.com
OCI 4 sai à luz trazendo questões importante sobre as formas do ódio e algumas práticas odientas ancoradas no fenômeno da identificação ou da perda da capacidade de diferenciar o bem do mal, ambos facilitados por ideologias que se sustentam no ódio e na segregação. Os escritores que dão ensejo a tais questionamentos são Daniel Goldhagen, cientista político que escreveu o polêmico livro Os carrascos voluntários de Hitler [1996], Hannah Arendt, com seu esforço para explorar os desvãos de uma época que colocou a violência no centro da política em As origens do totalitarismo [1951], o cineasta Michael Haneke, em seu filme A fita branca [2009], que procura a origem do crime de ódio e aponta a educação rígida como uma causas fundamentais, e o músico argentino Charly García.
Nos textos deste Boletim, nossos colegas privilegiam, em suas reflexões, a atualidade do momento e interrogam fatos diversos noticiados na mídia, em que se destaca o lado mortífero do amor ao próximo: “Eu te amo, mas porque inexplicavelmente amo em ti algo mais do que tu – o objeto a minúsculo – eu te mutilo”.
Na perspectiva de uma diferenciação entre as paixões do ódio, da cólera e da indignação, dois textos introduzem a questão de saber o que é a indignação, não apenas na relação do sujeito com o Outro, mas como “um laço do inconsciente e o real através do a em um corpo vivo (que) não é possível sem a pulsão”.
Desejo-lhes uma boa leitura!
ÓDIO, SEMBLANTE E SER¹
Romildo do Rêgo Barros (EBP)
romildorbarros@terra.com.br
Uma ideia verdadeira simplesmente porque é verdadeira nunca vence uma paixão, somente uma paixão vence uma outra paixão se for mais forte e contrária a ela. (Espinosa)
Lacan nos deixou uma contribuição decisiva logo no seu primeiro seminário, quando definiu o ódio, juntamente com o amor e a ignorância, como uma paixão do ser, e não como um afeto ou um sentimento. Lacan cita esse trio de paixões também em “Função e Campo da Fala e da Linguagem” e na “Direção do Tratamento…” (onde os cita como formas de “demanda sem objeto”, etc.). Apesar de poderem muitas vezes nascer de contingências, são paixões no sentido de que operam como necessidades.
Acho que a particularidade do ódio, entre outras, está na permanência da paixão, no seu caráter de fundamento, que não se extingue ao ser “expresso” sob a forma da ira ou da cólera².
O ódio tem uma permanência que se liga ao fato de que o seu objetivo não é a dor nem a angústia do outro, como no sadismo, mas a sua destruição: é preciso que o ser do outro odiado não mais faça parte do mundo, não mais retorne. Cabe aqui lembrar a deliciosa história de sua juventude contada por Lacan, no Seminário 20, que se passava no prédio onde morava, cujo porteiro dedicava aos ratos um ódio absoluto, descrito por Lacan como “um ódio igual ao ser do rato”³.
Mesmo que não ocorra nunca, a destruição do outro continua no horizonte do ódio: basta pensar no ódio religioso, no ódio racial ou no ódio de classe, todos eles acima das contingências, e verão do que estou falando. Em um certo sentido, a fúria seria até uma suspensão da paixão, em função da ação imediata.
Um exemplo, a partir de um fato ocorrido no ano passado, no Rio: em uma esquina de Copacabana, um imigrante sírio vendia esfihas. Chega um desconhecido e começa a gritar, ameaçando com um cano de ferro: “volte para seu país!”. A chegada de outras pessoas impediu o massacre.
Podemos ver nesse fato mais de um nível: no primeiro, temos a fúria, que impele o passante à agressão contra alguém que ele não conhecia, talvez nunca o tivesse visto, mas que, se posso dizer assim, brandia com seu próprio corpo e com suas esfihas um significante que mostrava a exclusão: sírio, ou imigrante, ou refugiado, ou até terrorista; um significante que tinha a função precisa de representar a estranheza. O sírio era suposto excluir o passante, assim como o passante o excluía. “Volte para seu país!” era uma ordem, ou mesmo um pedido, de que fosse recomposta a pureza do corpo sem estranheza, sem o suplemento real que constitui uma objeção à inteireza do imaginário. Um real que fosse equivalente ao imaginário. Uma pergunta: não será esse o cerne do fascismo? Nesse sentido, o estranho não precisava ser sírio nem vender esfihas: podia ser negro, índio, mulher ou gay. Bastava pertencer a uma hipotética minoria, mesmo que, como no caso dos negros e mulheres no Brasil, isso esteja longe de ser uma verdade estatística. Eles são minoria não por serem menos numerosos do que a maioria, mas por serem suplementares, por se situarem além do todo que se reconhece como todo⁴. Esse é, me parece, o verdadeiro sentido da segregação.
Penso que, contrariamente a Deleuze, Lacan, assim como Freud, situou diferentemente essa relação. Ela foi situada por ambos de modo topológico: há uma expulsão originária (Austossung), constituindo o dentro e o fora que, a partir daí, se opõem. O que foi expulso do sujeito retorna como ódio do estranho, que é um desdobramento do ódio de si.
No caso do sírio, como indica Freud em “A negativa” (1925), o estranho que o agressor situa é, na verdade, uma projeção. Ou “um reencontro”, como dizia Freud. O encontro com o sírio apela para uma expulsão que, na verdade, já houve e constituiu o sujeito. É literalmente um encontro com o real.
A fúria, ou a ira, para usar o termo de Sêneca, é a explosão contingente de um afeto que se enraíza na paixão do ódio.
Notas
¹ N. A.: Texto extraído da discussão ocorrida na EBP Seção SP, em 26 de novembro de 2018.
² SÊNECA., Sobre a Ira. São Paulo: Companhia das Letras. Livro de Sêneca para Novatus, seu irmão mais velho.
³ LACAN, J. O Seminário, livro 20, Mais, ainda. Rio De Janeiro: Jorge Zahar, 1989, p. 200.
⁴ N.A.: Vale lembrar aqui a definição que Gilles Deleuze deu sobre maioria e minoria, em uma entrevista dada a Tony Negri nos anos 90: “As maiorias e minorias não se distinguem pelo número. Uma minoria pode ser mais numerosa do que uma maioria. O que define a maioria é um modelo com o qual se deve estar conforme: por exemplo, o europeu médio adulto macho morador das cidades… Enquanto que uma minoria não tem modelo, é um devir, um processo”. Disponível em: http://clinicand.com/2018/04/28/596/
É A INDIGNAÇÃO UMA PAIXÃO?
Mónica Torres (EOL)
motorres@fibertel.com.ar
Lacan não inclui a indignação entre as paixões da alma ou do objeto a. As paixões do ser – o amor, o ódio e a ignorância – têm relação com o Outro.
Assim, a diferencia das paixões da alma ou das paixões do objeto a, que se referem ao falasser (parlêtre)¹.
Lacan toma o Tratado das paixões, de Descartes, e compara suas paixões da alma com as dele.
Permito-me fazer um quadro que compara as paixões do ser com as paixões da alma em Televisão e com as paixões da alma em Descartes². Vou incluir as Dimensões da outra coisa, que Lacan menciona no Seminário 5³, que são: tédio (como nas paixões da alma), oração, desejo (como nas paixões para Descartes), vigília, reclusão e pânico⁴.
O tema do IX ENAPOL inclui somente uma das paixões do ser: o ódio. A cólera é um dos pecados capitais, e é interessante a leitura do artigo de François Regnault, “Paixões dantescas”⁵, porque ali ele nos fala das referências de Lacan a Dante, Spinoza, São Tomás e Descartes.
A cólera (também chamada ira) é um dos pecados capitais. O ódio, então, paixão do ser. E a Indignação?
Descartes, em seu Tratado das paixões, nos fala da indignação no artigo 65, intitulado precisamente de “A indignação e a ira”: “Todavia, o mal feito por outros, ainda que não tenha nenhuma relação conosco, suscita unicamente nossa indignação; mas, quando é contra nós mesmos, também provoca nossa ira”.
Ainda que Descartes a mencione, Lacan não considera que a indignação seja uma das paixões da alma em Descartes, e é porque este conclui que só existem seis paixões primitivas, aquelas que mencionei no quadro que propus.
Então, a indignação não pertence às paixões da alma. Descartes considera que é algo que acontece quando fazem algum mal ao outro.
Permito-me dar um salto aqui e incluir Hegel, que, na Fenomenologia do espírito, fala da “bela alma”⁶. Creio que a indignação tenha um parentesco com a histeria (bela alma).
Para dizer com mais clareza (por conta da brevidade deste texto), considero que a indignação não é uma paixão, mas trata-se, sim, de uma posição histérica, com uma exceção: é possível que a indignação, que concerne a um dano perpetrado a outro, esteja relacionada com nossa posição ética.
Nesse caso, o mal ocasionado aos outros pode nos levar a uma indignação legítima, vinculada mais à lei do coração, também mencionada no capítulo 5 da já citada Fenomenologia.
Se a indignação não leva ao ato, pelo contrário, separa o sujeito do mundo, trata-se da bela alma (histeria). Se a indignação leva à ação, disso resulta a loucura de querer emparentar a lei com o coração.
Tradução: Glacy Gorski
Revisão: Paola Salinas
Notas
¹ LACAN, J. “Televisão”, In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
² DESCARTES, R. As paixões da alma. São Paulo: Editora Lafonte, Coleção Grandes Obras do Pensamento Mundial, 2017.
³ LACAN, J., O seminário, livro 5, as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. pp. 182-184.
⁴ TORRES, M. “Pasiones en bloque”, In: Revista Enlaces, n°23, ICdeBA, Grama Ediciones, ago. 2017. p. 18.
⁵ REGNAULT, F. “Pasiones dantescas”, In: Revista Enlaces, Op. cit. p. 5.
⁶ HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2014.
FALAR DE PAIXÕES
Susana Dicker (NEL)
lsdicker@gmail.com
Perguntar por essas três paixões – ódio, cólera e indignação – é entrar nesse terreno que Lacan elegeu separar dos afetos freudianos e, em particular, dessa versão da psicanálise, que manteve a confusão com as emoções. Nesse sentido, é oportuno lembrar a afirmação de Éric Laurent, “chamamos de paixão uma articulação do inconsciente com o real do gozo”¹, enquanto fantasia e pulsão estão comprometidas nela. “Uma solda entre o saber do inconsciente e o gozo”², um laço do inconsciente e do real através do a em um corpo vivo.
Nossa prática se orienta para o mais singular do gozo do ser falante. Daí que, quando pensamos nessas paixões, expressões desse gozo singular, nos deparamos com o paradoxo de que não se manifestam sem a afecção que o Outro produz no parlêtre. Seja a partir do Outro da civilização, seja a partir do Outro do amor, tais paixões do parlêtre não se apresentam sem as do Outro. Lacan o plasmou nessa dicotomia entre paixões do ser, da relação com o Outro, da alienação, e paixões da alma, paixões do a. Quando é assim, falamos do Outro e do Um? Ou concordamos com o conceito de extimidade e aceitamos que o Outro é Outro dentro de mim mesmo?
Ali onde o ser falante se defende da pulsão que o habita, situando-a no campo do Outro, fazendo-o responsável do que lhe ocorre, temos a operação da fantasia que encontra sua ocasião num Outro habitado por um vazio em que é possível depositar a causa da angústia, que não é senão o objeto de sua fantasia. Mas podemos traçar uma ponte para não ficarmos presos nessa dicotomia na medida em que a vida do parlêtre inclui o laço ao Outro e, entretanto, é responsável por seu gozo, que não faz laço. Uma citação de Lacan instala esta ponte: “Eu te amo, mas porque inexplicavelmente amo em ti algo mais do que tu – o objeto a minúsculo – eu te mutilo”³. É pensar a paixão da falta-a-ser a partir do a e dar lugar aos arranjos singulares de cada ser falante. Eis aqui o que dá ao Outro sua posição: acede-se a ele pelo lugar de um gozo, mas, na medida em que o gozo está proibido, essa posição do Outro está construída não sem o aparelho significante, o que nos instala no terreno da demanda. E, se se demanda dar o que não se tem, já não estamos na ordem do ter, mas do ser, ser de gozo.
Pensar a paixão como um laço do inconsciente e o real através do a em um corpo vivo, não é possível sem a pulsão. E, se dela Freud dizia que seu fim é ativo, ainda que ela seja muda, podemos concluir que as paixões são um de seus modos de expressão. Germán García o diz nestes termos: “Contra a tradição que identifica a paixão com o patológico (…) deve-se dizer, com a psicanálise, que as paixões falam na decisão de tomar a palavra e nas figuras que constituem a dimensão semântica da linguagem, dimensão irredutível à sintaxe”⁴.
E isso é notável, em particular, na cólera e na indignação. Enquanto no ódio se trata de uma temporalidade diferente, Lacan coloca a cólera como irrupção do real. “Quando no plano do Outro, do significante, ou seja, sempre, mais ou menos, no da fé, da boa fé, não se joga o jogo”⁵. Disrupção que quebra a crença no Outro e comove a trama simbólica que sustentava o sujeito.
E a indignação? “Não é a cólera. (Esta) é um afeto e a indignação é uma posição subjetiva, a daquele que responde como sujeito no pessoal e no social ao se ver in-dignado, despojado de sua dignidade subjetiva […] Manifestar a indignação, penso com Lacan, é negar-se a ser reduzido ao ignóbil de um ser que teria que engolir a vergonha de viver sem o valor dado pelos significantes que o identificariam em sua dignidade subjetiva⁶.
Podemos concordar ou não com Gallano, mas, como psicanalistas, não podemos desconhecer a relação entre a indignação e a dignidade como ética do desejo. A indignação, paixão ligada à abjeção, não é sem o objeto a como abjeto, dejeto. Isso nos orienta em direção a uma política do sintoma com seu antecedente em Freud, que acreditou na dignidade dos dejetos da vida psíquica, levou-os a sério. Oportunidade do sujeito de conseguir sua salvação se damos lugar à dignidade de seu gozo e apostamos na dignidade do Sinthoma.
Tradução: Maria Ruth Jeunon Sousa
Revisão: Paola Salinas
Notas
¹ LAURENT, É. As paixões do ser. Escola Brasileira de Psicanalise – Seção Bahia e Instituto de Psicanalise da Bahia, Salvador: nov. 2000. p. 87.
² ___________ Ibid. p. 87.
³ LACAN, J. O seminário, livro 11, os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p. 249.
⁴ GARCÍA, G. “El retorno de las pasiones”. Disponível em: http://wapol.org/ornicar/articles/grc0029.htm
⁵ LACAN, J. O seminário, livro 10, a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. p. 23.
⁶ GALLANO, C. “Genocidio social…”. Disponível em: https://traficantes.net/sites/default/files/Impactos%20subetivos%20del%20actual%20genocidio%20social.pdf
REFLEXÕES SOBRE: “OS CARRASCOS VOLUNTÁRIOS DE HITLER”
Sobre “Os carrascos voluntários de Hitler: o povo alemão e o holocausto”¹ de Daniel J. Goldhagen
Silvia Elena Tendlarz (EOL)
stendlarz@fibertel.com.ar
O livro de Daniel J. Goldhagen, publicado em 1996, coloca a ideia central de que o genocídio nazista dos judeus não foi perpetuado somente pelos membros do Partido Nacional-Socialista – que tampouco se limitavam a obedecer a ordens –, mas também por milhares de alemães “comuns”, não necessariamente filiados, que participaram voluntariamente e com entusiasmo. A tese central é que isso foi possibilitado pelo antissemitismo reinante na Alemanha, desde longa data, o qual fez com que todo o povo alemão investisse contra os judeus e participasse da maquinaria do extermínio.
Ele retoma as três instituições criadas para sua execução entre 1941 e 1945: os batalhões da polícia da ordem, formados por reservistas de meia idade, recém-nazificados, que caçavam e exterminavam os judeus; os campos de trabalho, onde eram atormentados até sua morte; e as marchas da morte, nas quais muitos morreram por esgotamento. Suas fontes são os testemunhos dos tribunais alemães do pós-guerra. Sua análise não se limita, então, aos assassinatos nas câmaras de gás. O caso do batalhão 101, composto por muitos profissionais de Hamburgo, tornou-se paradigmático. A todos eles foi dada a possibilidade de não participar dos massacres sem receber uma represália, mas poucos se retiraram. Goldhagen se pergunta como é possível que os alemães comuns tenham cometido tais crimes sem sequer vacilar e sua resposta recai sobre o antissemitismo alemão, tese discutida no meio acadêmico.
Ao contrário, no final do século XX, as jovens gerações alemãs queriam sair do silêncio de seus pais e saber o que aconteceu e questionaram o porquê de eles terem sido bem acolhidos. E, assim, tornaram manifestos os horrores de uma ideologia baseada no ódio e na segregação.
Podemos perguntar como é que o sistema de identificações do “nós” gera “outros” despojados de toda humanidade que impacta, não só pela maldade dos carrascos, como também pela “zona cinzenta” formada por aqueles que contribuem sem pensar no que fazem, que aceitam em silêncio, tornando-se apáticos, desinteressados ou indiferentes, ou que simplesmente não atuam de nenhum modo para acolher e fazer ressoar a dor de existir do “outro”.
Como preservar uma ética que oriente nossa solidariedade em um mundo que vem se tornando cada vez mais estranho e indiferente, emparedado em um “nós” cada vez mais circunscrito?
Tradução: Glacy Gonzales Gorski
Revisão: Paola Salinas
Notas
¹ GOLDHAGEN, D. J. Os carrascos voluntários de Hitler: o povo alemão e o holocausto. São Paulo: Cia. das Letras, 1997.
A CONDIÇÃO HUMANA
Sobre “Origens do totalitarismo”¹ de Hannah Arendt
Mayra de Hanze (NEL)
malaquita32@hotmail.com
Hannah Arendt, autora de Origens do totalitarismo, diagnosticará no totalitarismo um mal radical que se atreveu a declarar como “caráter supérfluo da vida humana”².
Separando-se completamente do conceito freudiano de pulsão de morte, ela elucida a banalidade do mal quando propõe ao New Yorker cobrir o processo de Otto Adolf Eichmann, ex-dirigente do setor IV-4 do Escritório Central de Segurança do Reich.
A narradora relata a biografia de um alemão comum, essa pessoa “média” e “normal”, que a impressiona ao longo de todo o processo, pois revela ser absolutamente incapaz de diferenciar o bem do mal. Arendt observa sarcasticamente sua luta heroica contra a língua alemã, suas fórmulas estereotipadas e sua linguagem administrativa, sem uma única frase que não fosse um clichê. Era impossível se comunicar com ele: não porque mentisse, mas porque esse homem tinha o triste dom de se consolar pronunciando frases prontas, como se citasse instruções ou de ordem. Eichmann deu-lhe a oportunidade de demonstrar que, sem terem sido monstros sádicos ou torturadores inveterados, a grande maioria de quem fez o nazismo compartilhava essa condição banal de renúncia ao juízo pessoal.
Em outras palavras, Eichmann é uma ilustração concreta da manipulação da humanidade característica do totalitarismo. Sem ser estúpido no sentido literal, esse burocrata manifestava uma pura ausência de pensamento.
De maneira ainda mais inquietante, “horrorosamente normal”, cometendo uma nova espécie de crimes, era incapaz de julgar, mas se dava ao direito de decidir quem devia e quem não devia habitar este planeta. É Kant distorcido. Era culpado porque tinha obedecido, e, no entanto, a obediência era considerada uma virtude.
A terrível, indizível, impensável banalidade do mal não quer dizer inocência. Arendt é a favor da pena de morte, uma vez que o Direito está destinado a castigar os crimes que esse homem cometeu, e não a pessoa incapaz de distinguir o bem do mal. Juntamente a outros, ela deseja que Eichmann seja levado a um tribunal internacional, pois o crime contra os judeus era também um crime contra a humanidade³.
Tradução: Letícia Lopez
Revisão: Paola Salinas
Notas
¹ ARENDT, H. Origens do totalitarismo. São Paulo: Cia. De Bolso. 2013.
² KRISTEVA, J. O Gênio Feminino: a vida, a loucura, as palavras. Tomo 3. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.
³ ___________ Op. cit.
A FITA BRANCA: HÁ CAUSALIDADE LINEAR OU PULSIONAL?
Sobre “A fita branca” de Michael Haneke
Tânia Abreu (EBP)
taniaabreu.ta@gmail.com
Compartilho indagações que me surgiram após assistir ao filme A fita branca, dirigido por Michael Haneke – que se interessa pelo tema do mal e da violência –, ganhador da Palma de Ouro de 2009. Em 1913, em um vilarejo do norte da Alemanha que vive sob o comando de um médico, um pastor e um barão, uma série de estranhos acidentes passam a acontecer desencadeando uma busca desenfreada pelos responsáveis. Há a figura central de um professor, narrador e protagonista das cenas de amor, empenhado em desvendar tal mistério. A fita branca tem função ambígua: ao mesmo tempo que marca a pureza infantil, ao ser colocada nos braços das crianças, torna-se uma marca do mal a ser corrigido.
A tese dos críticos¹ é que uma educação infantil rígida e sem amor – transmitida no filme, entre outros recursos, pelo objeto voz sempre empostado com austeridade –, pode ser considerada a origem do mal na vida adulta. O filme tem como cenário a Primeira Guerra Mundial – manifestação mais crua que a pulsão de morte é primária –, mas, como mira, o nazismo. Apesar de ser um filme rodado na Alemanha da primeira metade do século XX, é de uma atualidade estonteante. A crítica diz: “(…) faz A fita branca ao demonstrar que, em qualquer tempo e lugar, o mal só é capaz de produzir grandes hecatombes quando corrompe primeiro as pessoas comuns em suas relações mais íntimas e invisíveis”².
A pergunta é: uma educação rígida, exercida em nome de uma moral hipócrita e religiosa, é a base do ódio, da cólera e da indignação; origem do mal, de modo tão linear, como propõem os críticos? Ou essa atmosfera retratada no filme já é uma representação do primário, constituinte do ser falante, a pulsão de morte? Incorporada nos corpos infantis, objetos de gozo dos adultos?
A ideia de memória em Freud foi erigida sob as marcas mnêmicas que se reordenam, havendo uma mistura de tempos, do passado, do presente e do futuro. O futuro é quem determina o passado nessa lógica, que rompe com o determinismo linear. A contingência de um acontecimento, encontro com o Real, determinará a natureza do ato, violento ou não. O après coup é um conceito fundamental, pois é o futuro que determinará o que foi o passado de modo contingente, não linear, necessário para assegurar que há violência onde não se permitiu gozar. Aqui entra a rigidez.
Notas
¹ ALONSO, S. L. “O tempo que passa e o tempo que não passa” In: Revista Cult. Abr 2006.
² SOBRINHO, M. Crítica de A fita branca., Disponível em: www.planocritico.com/critica-a-fita-branca/. Acesso em mar. 2019.
CHARLY GARCÍA
Por Fabíola Ramon
“Por darte lo que dí,
Me transformé en un souvenir
[…]
No quiero mas que me dés con cuenta gotas tu amor
[…]
Yo me quiero morir,
No aguanto mas estar aquí.
Asesíname, asesíname, asesíname, asesíname”¹.
O aclamado e polêmico músico e compositor Charly García, um dos pais do rock argentino, articula Amor, Ódio de si e rock and roll de forma engenhosamente lírica e apelativamente melancólica na música “Asesíname”, do álbum Rock and Roll YO, de 2003. Com sua intensidade ácida, ele faz cantar a face destrutiva do amor que, para alguns sujeitos, a partir da parceria amorosa fantasmática, dá corpo e lugar ao ódio de si a partir da colocação do objeto na cena, tal como nos actings-outs ou na saída do sujeito da cena, como nas passagens ao ato suicida.
Freud, em “Luto e melancolia”², ao discorrer sobre o trabalho de perda do objeto, localiza o Eu como objeto de amor para si mesmo e um depósito no qual a libido pode ser enviada ou retirada dos objetos, incluindo a parceria amorosa. Ele destaca:
“[…] a melancolia contém algo mais que o luto normal, na melancolia, a relação com o objeto não é simples; ela é complicada pelo conflito devido a uma ambivalência. Esta ou é constitucional, isto é, um elemento de toda relação amorosa formada por esse ego particular, ou provém precisamente daquelas experiências que envolveram a ameaça da perda do objeto. Por esse motivo, as causas excitantes da melancolia têm uma amplitude muito maior do que as do luto, que é, na maioria das vezes, ocasionado por uma perda real do objeto, por sua morte. Na melancolia, em consequência, travam-se inúmeras lutas isoladas em torno do objeto, nas quais o ódio e o amor se digladiam: um procura separar a libido do objeto, o outro, defender essa posição da libido contra o assédio”.
A música “Asesíname” dá voz, som e lugar a essa ambivalência presente na melancolia, marcada pela luta entre amor e ódio.