Boletim OCI – 5 – Comissão Científica e Entrevista É. Laurent (Parte 2)
Patricia Badari (EBP)
badaripatricia@gmail.com
Três paixões, cinco textos e um vídeo. Eis OCI 5, que não para por aí, tampouco o IX ENAPOL.
Três paixões – ódio, cólera e indignação – que circulam em nossa civilização desde sempre. Mas, nos últimos tempos, mais e mais. Três significantes, três afetos que requerem precisões teóricas, clínicas e até mesmo políticas. Como lê-los desde Freud e Lacan? O que é cada uma dessas paixões do ponto de vista da orientação lacaniana e como se apresentam na experiência analítica?
Cinco textos escritos pela Comissão Científica e o segundo vídeo com as preciosas orientações de Éric Laurent nos conduzem e nos dão o tom para este trabalho até setembro. Precisões cirúrgicas sobre cada um desses afetos, a partir das quais podemos tirar consequências.
Se quiserem mais, cliquem nos “Textos preparatórios” e nas “Referências bibliográficas” para seguir nessas investigações e elaborações que estão por serem feitas, inclusive por vocês. E, caso queiram, enviem seus textos para as simultâneas clínicas. Cliquem em “Envio de trabalhos” e vejam.
Boa leitura e boa escuta!
AS PAIXÕES E A DOBRADIÇA CARTESIANA
GERARDO ARENAS (EOL)
grrdrns@gmail.com
Veneza, 1610: Galileu dá à luz a ciência (Mensageiro sideral). Londres, 1620: Bacon retira a placenta da linguagem (Novo instrumento) e assim funda seu método. Leiden, 1637: Descartes pretende restabelecer o jugo filosófico. Por isso seu método não é científico, o do Discurso. Evidencia-o sua última obra, As paixões da alma (1649), que abre as portas a esse “oceano de falsa ciência”, mapeado por Berkeley e que não cessa de crescer. Descartes nos legou boa matemática, inovadora filosofia, escassa ciência e uma perigosa dobradiça que articula essas três coisas com o charlatanismo. Quem compara o que dizem sobre o medo, o artigo LVIII de seu tratado sobre as paixões e os sistemas de valência negativa na obsessão¹, além de deplorar quão pouco mudaram as coisas em quatro séculos (vinho medieval classificatório em assépticos odres pós-modernos), achará na pseudociência contemporânea e seus Research Domain Criteria muitos genes cartesianos e alguns tomistas, mas poucos galileanos.
Ainda que a psicanálise não seja ciência, deve precaver-se da dobradiça cartesiana. Cruzá-la pode adoecê-la. É seu risco congênito. Não está a salvo.
Bem o ilustra a história do princípio do prazer. Durante dois milênios foi a do genial Epicuro e seus amigos hedonistas racionais, até que, no século XIX, Fechner quis fazer dela uma lei de processos não conscientes – ainda que fosse impossível validá-la ou refutá-la –, o que seduziu Freud. Descartes, proscrito de sua obra salvo por dois sonhos inanalisáveis², pôde, não obstante, vangloriar-se de havê-la infestado: Disfarçado de Fechner, avanço mascarado. Nem sequer o Além do… erradicou-o: o econômico princípio do prazer continuou enquistado na esbanjadora economia dos habitantes da linguagem, tanto que Freud, jogando fora a criança com a água do banho³, no fim renunciou a seu melhor guia estrutural⁴. Lacan, por não haver esquecido que se esquecemos as palavras perdemos o parlêtre, conseguiu reciclá-la⁵. Com isso afastou a psicanálise, por um tempo, da dobradiça envenenada – apesar do que ainda continuamos a acreditar que o princípio do prazer vale no ser falante.
Convém levar isso em conta na hora de abordar as paixões na experiência analítica. Aristóteles constituiu a epistéme antiga quando lhe proscreveu de se ocupar do singular, Bacon fundou a ciência moderna no exílio do sujeito vazio e nós, os analistas, devemos nos ocupar de ambos os resíduos do discurso científico⁶. Pois bem, se perdemos de vista o significante (causa do sujeito) e o estilo sinthomático que dá aos laços libidinais a singularidade que nos incumbe, a dobradiça cartesiana pode nos infestar e nos fazer merecedores do desprezo cultural.
Por isso, devemos evitar precipitar-nos na sociologia e olhar no espelho dos neurônios, mas também evitar arrastar o incensário da malignidade do gozo. Lembremos que a psicanálise sempre navega entre a Cila da ciência e a Caríbdis da religião⁷, e que a potência paradigmática de uma singularidade bem eleita e com valor de bússola, tal como o arrebatamento pintado por Duras e analisado por Lacan⁸, vale mais que mil exemplos particulares de um universal sempre problemático para nós.
Tradução: Maria Ruth Jeunon Sousa
Revisão: Paola Salinas
Notas
¹ PITTENGER, C. (ed.) Obsessive-Compulsive Disorder. Oxford up: Nueva York, 2017, p. 690-696.
² FREUD, S. “Alguns sonhos de Descartes: uma carta a Maxime Leroy (1929)”, In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1980, t. xxi, p. 207-208.
³ N.T.: Em espanhol, a expressão correspondente é “arrojar el niño con la água sucia”, jogar fora a criança com a água suja, deixando a ideia do banho subtendida; optamos pela expressão em português.
⁴ FREUD, S. “Inibições, sintomas e angústia”, In: Edição Standard Brasileira, op. cit., t. xx, p. 107-201; ARENAS, G. Pasos hacia una economía de los goces. Grama: caba, 2017, p. 18-24.
⁵ LACAN, J. “A Terceira”, In: Opção Lacaniana Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 62, Edições Eolia, São Paulo: dez. 2011, p. 11.
⁶ ARENAS, G. “Una brújula defectuosa”. Lo real puesto al día, en el siglo XXI, Grama: caba, 2014, p. 33-37.
⁷ _________ Sobre la tumba de Freud. Grama: caba, 2015, p. 26-28.
⁸ LACAN. J. “Homenagem a Marguerite Duras, pelo arrebatamento de Lol V. Stein”. Outros escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 198-205.
O ÓDIO – ALÉM, AQUÉM DO PAI
Luiz Fernando Carrijo da Cunha (EBP)
lufcarrijo@gmail.com
Já sublinhamos¹ as várias vertentes em que se pode tomar o tema de nosso IX ENAPOL. Salientamos cada uma das três paixões a partir de referências de Freud e de Lacan. Pois bem: nos interessa isolar a paixão do ódio para além da concepção freudiana que o liga, sua origem ao pai, através do que se situa como “ambivalência”. Ademais, a função de exceção “garantiria” uma certa distribuição e regulação do gozo, fundando um “universalismo”, um “para todos” que Lacan, desde o Seminário 11², colocará em questão. Naquele ano Lacan falaria sobre “Os nomes do pai”³, uma pluralização considerada a partir da queda do Pai como lugar de exceção com consequências para o que da civilização produz sintoma. Os nomes-do-pai não aconteceram, tendo apenas uma aula publicada⁴, mas a questão foi desenvolvida por Lacan nos anos posteriores.
Se a questão do “universal” e o lugar de exceção que ele engendra ocupou Lacan tal como podemos acompanhar, é interessante localizar algumas destas passagens para nos orientarmos – sublinhemos o termo “segregação” para dar conta dessa orientação: “Nosso futuro de mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação” (1967)⁵. “Equilíbrio” que remete à continuidade de um funcionamento, cujo preço é a “segregação”.
Em 1968:
Parece-me que em nossa época o vestígio, a cicatriz da evaporação do pai é o que poderíamos situar sob a rubrica e o título geral de segregação… o que caracteriza nosso século é uma segregação ramificada, reforçada, que se sobrepõe em todos os graus, e não faz senão multiplicar as barreiras⁶.
Não precisamos destacar aqui que o ódio está aí como elemento fundamental no que Lacan faz referência à “multiplicação das barreiras”. Essa seria a porta de entrada para conceber o ódio para além do seu valor de “ambivalência”.
Tentemos capturar a lógica que se coloca: “a evaporação” do pai deixa uma cicatriz. Mas o que estaria na base dessa evaporação? Lacan também nos indica que entram em jogo “os mercados comuns”… E como não os entender na perspectiva do capital, de mãos dadas com as tecnociências, que modificaram o estar do homem no mundo? Se o Pai é revelado como “semblante”, o lugar vazio outorga o desvario do gozo. A segregação diz respeito ao isolamento dos “modos de gozo”. Mas lembremos que a segregação, se ela é detectada hoje no seio da civilização, ela afeta o sujeito, já que nem todo gozo pode ser compartilhado. O fator ansiogênico se liga onde o excesso não encontra uma resposta universalizante. Para a psicanalise, o sujeito tampouco encontra lugar para o singular do gozo num grupo segregativo.
O gozo do Um-sozinho está na raiz da segregação, o ódio que prolifera está intimamente ligado a ele.
Miller adverte que se o racismo é assunto para a psicanálise, o é desde suas “causas obscuras”⁷. O gozo do Um-sozinho está aí em causa; na medida em que é êxtimo, o sujeito não pode reconhecê-lo sendo então localizado no Outro. Fonte do ódio, o que é o mais íntimo ao sujeito, também lhe é exterior. A partir dessa tese de Miller, Laurent aborda o ódio como “afeto primordial”⁸, dizendo:
“O primado do ódio é sobretudo uma desidealização do amor como primeiro afeto…. – Esta perspectiva, dá conta da oposição entre os populismos dos anos trinta, verticais… e os novos populismos apoiados em movimentos horizontais… unidos pelo ódio da elite ou pelo ódio de objetos intercambiáveis…”.
Valeria a pena aprofundar nessa vertente do “primado do ódio” e, a ele, articular tanto a cólera quanto a indignação como manifestações de um sujeito atabalhoado por seu gozo.
Notas
¹ N. A.: Argumento do IX ENAPOL. Disponível em: https://ix.enapol.org/argumento/
² LACAN, J. O seminário, livro 11, os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
³ ________ Nomes-do-Pai. Op. cit., 2005. p. 55 e seguintes.
⁴ ________ Ibid.
⁵ ________ “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”. Outros Escritos. Op. Cit. 2003. p 263.
⁶ ______ “Nota sobre o Pai”. In: Opção Lacaniana, nº 71, nov. 2015.
⁷ MILLER, J.-A. “Racismo”. Extimidad. Buenos Aires: Paidós Ed., 2010. p. 48.
⁸ LAURENT, É. “L’Europe a l’epreuve de la haine” (Partie II). In: Lacan Quotidien, nº 822. Disponível em: lacanquotidien.fr
O DESAFIO DA CÓLERA
Gustavo A. Zapata Machín (NEL)
gustavo.a.zapata.m@gmail.com
“Há uma razão particular que impede a alma de poder alterar ou estancar rapidamente suas paixões, a qual me deu motivo de pôr mais acima, em sua definição, que elas não são apenas causadas, mas também mantidas e fortalecidas por algum movimento particular dos espíritos. Esta razão é que elas são quase todas acompanhadas de alguma emoção que se produz no coração, e, por conseguinte, também em todo o sangue e nos espíritos, de modo que, enquanto essa emoção não cessar, elas continuam presentes em nosso pensamento da mesma maneira que os objetos sensíveis aí permanecem presentes, enquanto agem contra os órgãos de nossos sentidos. E como a alma, tornando-se muito atenta a qualquer outra coisa, pode impedir-se de ouvir um pequeno ruído ou de sentir uma pequena dor, mas não pode impedir-se, do mesmo modo, de ouvir o trovão ou de sentir o fogo que queima a mão, assim pode sobrepujar facilmente as paixões menores, mas não as mais violentas e as mais fortes, a não ser depois que se apaziguou a emoção do sangue e dos espíritos. O máximo que pode fazer a vontade, enquanto essa emoção está em vigor, é não consentir em seus efeitos e reter muitos dos movimentos aos quais ela dispõe o corpo. Por exemplo, se a cólera faz levantar a mão para bater, a vontade pode comumente retê-la; se o medo incita as pessoas a fugir, a vontade pode detê-las, e assim por diante”.¹
Assim argumentava René Descartes no século 17, em seu tratado das Paixões da alma, sobre a origem e o efeito que têm as paixões na vida das pessoas, sua função na relação consigo mesmas e o modo como modulam a experiência da vida afetiva. Inclusive prescreve, especialmente com a cólera, qual seria a chave que dominaria seu impacto avassalador na alma: o uso da vontade comandada pela razão, prescrição que vamos encontrar novamente, hoje, na atual reflexão psicológica e filosófica em torno da cólera.
A elaboração clássica acerca das paixões contou sempre com a cólera entre suas protagonistas. A Ilíada, atribuída a Homero, é uma ode à cólera, e toda a filosofia grega a menciona, de um modo ou de outro, como uma paixão de duas faces: uma face caótica, destrutiva, impossível de manejar, e outra face com propósito, construtiva, manejável. Desde sempre foi assimilada à loucura, situada inclusive como uma dentre suas causas, e fazendo residir no corpo tanto sua causa como suas manifestações.
Por muito tempo foi tomada como uma paixão ligada aos deuses; primeiro aos que residiam nos panteões grego e romano e, depois, ao deus único das religiões monoteístas. Podemos inclusive encontrá-la como um traço característico das divindades das nossas civilizações pré-colombianas e nas mitologias religiosas mais complexas do oriente longínquo. Se nos atemos à indicação de Lacan, no seminário A angústia², de que os deuses são um índice do real, então temos um guia de trabalho para examinar a cólera.
No argumento do nosso IX ENAPOL, temos uma assertiva assinalada: a cólera não recebeu muita atenção por parte dos psicanalistas, o que é, em parte, certo, pois – mesmo que tanto Freud como Lacan tenham deixado coordenadas precisas para nos orientar na investigação – a aposta está em situar as relações da cólera com a pulsão, com o desejo, com o gozo e estabelecer as possibilidades de uma clínica que permita circunscrever suas relações com o ódio, a indignação e outras paixões, sua especificidade, assumindo radicalmente, com o guia do ensino de Lacan, as consequências do corte que Freud opera, com sua invenção, no modo de pensar, e a arranjarmos com isso que comumente se chama de a “natureza humana”. Este é o verdadeiro desafio para a psicanálise de orientação lacaniana: poder esclarecer algo nesse campo, numa época marcada pela desordem no real agudizada pela resposta sempre falha dada pela aliança capitalismo + ciência e que deixa o sujeito, novamente, à mercê dos deuses.
Tradução: Letícia Lopez
Revisão: Paola Salinas
Notas
¹ DESCARTES, R. As paixões da alma. Disponível em: http://filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/116.txt. Acesso em 23 de fev. 2019.
² LACAN, J. O seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
O AFETO DA CÓLERA COMO TOQUE NO REAL
Ana Lydia Santiago (EBP)
analydia.ebp@gmail.com
Lacan, ao longo de seu ensino, reorienta o afeto em direção às paixões, distingue a angústia da emoção e resgata as contribuições clássicas da ética das paixões para uma leitura dos afetos no âmbito da clínica psicanalítica. Faz isso com vistas a evitar que os analistas se ocupem com sua classificação e a induzi-los a questionar que crédito dar aos afetos na experiência. Esclarece que cada analista deve se empenhar em “verificar o afeto”¹. O afeto não fala por si nem é verdadeiro só porque se manifesta e mobiliza o corpo. É preciso fazer com que ele seja verdadeiro. O que interessa é aquilo que, no afeto, prevalece do inconsciente. Verificar o afeto em Lacan significa, “no campo da linguagem, estabelecer em que o afeto é efeito de verdade”².
Na psicanálise, “[…] o afeto quer dizer que o sujeito está afetado nas suas relações ao Outro”³. Considera-se o significante, o Outro e o gozo. Para situar o gozo, faz-se necessária a mediação de um aparelho capaz de captar de que modo o gozo se conjuga com o mal. Segundo Miller, a contribuição original de Lacan consiste em extrair da reflexão filosófica as paixões do ser, as dimensões da virtude e do pecado, para introduzi-las como eixo central da investigação clínica dos afetos: “Os afetos estão ligados à questão do que é certo e do que é mal”⁴.
É somente a partir da falta moral que se pode resgatar a implicação do sujeito na cólera como sujeito de uma escolha de gozo. Essa escolha permite mesurar o alcance da clínica do bem dizer: não se trata de um mero manejo do significante pelo significante, mas do que vai proporcionar tipos de ressonância entre dois sistemas distintos − o do significante e o do gozo −, que oscilam em frequências próprias⁵. A ética do bem dizer visa a encontrar uma vibração que torne possível um acordo entre o significante e o gozo; ela “consiste em cernir, circunscrever, cingir, no saber, o que não pode ser dito”⁶.
A cólera como toque no real
A cólera nada mais é que “o real que chega no momento em que armamos uma belíssima trama simbólica, em que tudo vai indo muito bem, a ordem, a lei (…). Percebemos de repente que os pininhos não entram nos buraquinhos”⁷. É preciso uma decepção prévia, decorrente do fracasso de uma correlação esperada entre a ordem simbólica e a resposta do real. Uma outra imagem da cólera se dá quando tudo parecia tranquilo no estreito de Bósforo, mas uma tempestade faz o mar se agitar e afirma, então: “Toda a cólera consiste em fazer o mar se agitar”⁸. Essa é a imagem usada por Lacan para precisar que a cólera é provocada “quando, no nível do Outro, do significante – ou seja, sempre no nível da fé, da boa-fé –, não se joga o jogo”⁹.
A cólera é um exemplo convincente de que esse afeto chega ao corpo como desacordo, justamente porque a propriedade do corpo é a de ser a sede da linguagem. Na cólera há presença de “um verdadeiro toque do real”, o que sinaliza que a linguagem não se mostra inteiramente capaz de dar lugar a esse real. Ainda assim, paradoxalmente, o psicanalista não negligencia o fato de que é apenas no âmbito da estrutura da linguagem e da palavra que se pode incidir sobre o sujeito afetado pelo real da cólera.
Em “Televisão”, Lacan estabelece uma polaridade entre a dimensão do pecado e a da virtude no que concerne aos afetos. Quanto à tristeza, por exemplo, ele situa, no polo oposto, o gaio saber [gay savoir]¹⁰. Não se trata de um saber marcado pela potência, mas, ainda que fragilizado, é o que faz passar da impotência ao impossível, um impossível de saber cheio de entusiasmo e, nesse caso, sua virtude implica entusiasmo em atingir algum acordo possível entre significante e gozo, em poder cingir, via o saber, um pedaço do real.
Assim, se “os afetos estão ligados à questão do que é certo e do que é mal”1, qual é o polo oposto da cólera? A que virtude o pecado da cólera – que, de fato, integra a lista dos sete pecados capitais – faz contraponto como toque no real?
Assim, se “os afetos estão ligados à questão do que é certo e do que é mal”¹¹, qual é o polo oposto da cólera? A que virtude o pecado da cólera – que, de fato, integra a lista dos sete pecados capitais – faz contraponto como toque no real?
Notas
¹ LACAN, J. “Televisão”. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p. 524.
² MILLER, J.-A. “Les affects dans l’expérience analytique”. In: La cause du désir, 93, Paris: Navarin, set. 2016. p. 110.
³ ____________ Ibid. p. 108.
⁴____________ Ibid.
⁵ LACAN, J. “Televisão”. Op. Cit. p. 524.
⁶ MILLER, J.-A. “Les affects dans l’expérience analytique”. Op. cit. p. 110.
⁷ LACAN, J. O seminário, livro 6, o desejo e sua interpretação (1958-1959). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2016. p. 159. N. A.: Lacan define a cólera nesses termos, lançando mão de imagem de Charles Péguy para situá-la na relação do sujeito com o Outro. Também em: LACAN, J. O seminário, livro 7, a ética da psicanálise (1959-1960). Op. cit., 1986. p. 129-130.
⁸ ________ Ibid. p.160.
⁹ ________ O seminário, livro 10, a angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 23.
¹⁰ _________ “Televisão”. Op. cit., p. 525.
¹¹ MILLER, J.-A. “Les affects dans l’expérience analytique”. Op. cit. p. 110.
EXASPERAÇÃO, INDIGNAÇÃO E ANGÚSTIA
Henri Kaufmanner (EBP)
kaufmanner@gmail.com
Stéphane Hessel, em seu pequeno libelo contra a indiferença, Indignai-vos¹, convoca-nos todos a essa paixão. Em discordância com a noção de que os afetos se apresentariam como uma tentativa de harmonizar as relações entre o Eu e o mundo, Lacan os toma como paixões, paixões da alma². Trata-se dos efeitos da linguagem sobre o corpo, e o gozo aí produzido toca diretamente as relações do sujeito com o objeto.
O próprio Hessel nos permite essa leitura, ao escrever que seus motivos não nasceram de uma emoção, mas de uma vontade de engajamento. Ele se dizia um otimista natural, que queria que tudo o que fosse desejável fosse possível.
Ele reconhece que, na atualidade, é muito difícil ter clareza dos motivos para se indignar, mas acredita que basta procurar com atenção, que as causas se revelarão. Defende de forma veemente a indignação como uma prática política não violenta. Ao tecer comentários sobre atos terroristas, diz que os compreende, porém discorda de sua estratégia. Esses atos em nada adiantariam para a causa em jogo.
Para Hessel, os atos terroristas seriam explicados pela “exasperação” daqueles que se encontram em situação de submissão a um poder maior. Diz que, nessas situações, muitas vezes, as reações não conseguem não ser violentas. Contudo, insiste: é melhor es-perar que exas-perar. Acredita na esperança, aquela que, de acordo com seu relatado otimismo, tornaria possível tudo aquilo que se deseja.
Podemos concluir que, para Hessel, a indignação funciona como um tratamento da exasperação, levando à esperança.
No dicionário³, encontramos como sinônimos de exasperar: tornar áspero, enfurecido, irritar muito, encolerizar, enfurecer. Vejam que se trata de uma irritação intensa, colérica mesmo. Arriscamos assim mais um passo. Poderíamos tomar a indignação como um tratamento da cólera pela via da esperança, pelo menos quando nos vemos submetidos a um Outro poderoso e que nos exaspera?
Exasperação ou cólera se aproximariam da referência lacaniana da emoção, na forma como esta se apresenta no esquema de “Inibição, Sintoma e Angústia”, no seminário X⁴, na conjugação do máximo de dificuldade, o embaraço, com a emoção, localizada no eixo da limitação do movimento. Nesse encontro entre a emoção e o embaraço, teríamos as condições que precipitariam à passagem ao ato.
Nesta, o sujeito se precipita num campo, fora do sentido de sua vida, fora da dimensão fantasmática de sua experiência de ser. Assim, pela lógica presente em Hessel, a indignação deslocaria o sujeito dessa posição exasperada, restaurando, pela via do Ideal, um laço com a fantasia e produzindo um deslocamento no eixo do movimento em direção à perturbação/efusão, o e-moi. A partir da fantasia, articula-se a esperança otimista, que tornaria possível tudo aquilo que se deseja. Sem dúvidas, a indignação não é sem o objeto.
Não estaria essa esperança otimista aproximando a ideia de dignidade a de um ideal do Bem?
Em Televisão⁵, Lacan fala que, por várias vezes, viu a esperança levar ao suicídio, pura e simplesmente. A psicanálise permitiria elucidar o inconsciente de que se é sujeito, mas, tal esforço, ele somente recomendaria àqueles de desejo decidido, acrescentado que, para isso, a esperança não adiantará nada.
O convite de Hessel, que repercutiu de maneira intensa na Europa, e que tem uma consequência política inestimável, não é o mesmo convite ofertado pelo psicanalista. Ao psicanalista, no singular de sua prática, interessa algo que não é da ordem de um bem, mas do desejo decidido, causado por um objeto a ser elucidado a partir da experiência de cada sujeito, determinado que é por seu inconsciente. Não é um atravessamento que se faça sem a angústia.
Notas
¹ HESSEL, S. Indignai-vos. Trad.: Marly Peres. São Paulo: Texto Editores, 2011.
² MILLER, J.-A. «Les affects dans l’esperiénce analytique». La Cause du désir. n. 93. Paris, 2016. p. 98-111.
³ HOLANDA, A., B. de. Novo Dicionário da Lingua Portuguesa. 2a Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1986.
⁴ LACAN, J. Le Seminaire, livre 10: La angoisse (1962/1963). Paris: Seuil, 2004. p.93.
⁵ _________ “Televisão”. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2003. p.540.
Ana Lydia Santiago pergunta a Éric Laurent
Quanto ao Outro mau – o da maldade divina −, podemos considerá-lo uma fantasia, em que todas as formas do objeto a são, de certa forma, mobilizadas. A introdução desse objeto na concepção do Outro mau resolve o enigma da diferença significante, mas e o corpo? Como o corpo ou, mais precisamente, a proximidade do corpo do outro está implicada? Essa proximidade pode ser caracterizada como o que há de mais concreto no ódio?
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