Boletim OCI – 6 – Textos e Entrevista É. Laurent (Partes 3 e 4)
Ludmilla Féres Faria (EBP)
ludffaria@uol.com.br
No ar, o OCI 06! Neste número vocês encontram contribuições fundamentais para seguirmos em nosso debate sobre o tema do IX ENAPOL.
A tríade amor, ódio e ignorância é o mote utilizado por Laurent para introduzir o debate sobre os motivos que levaram Lacan a se interessar bem mais pelas religiões do que pela psicologia. Ele ainda esclarece a importância clínica e política de diferenciarmos a cólera do ódio nos dias atuais.
Os quatro filmes comentados neste número destacam a presença do ódio nas vertentes imaginária, real e simbólica. Cada um dos comentários nos instiga a localizar o modo candente com que esse afeto se apresenta: na guerra entre irmãos de O ódio e Zona Sul; no amor sem limite, que beira o ódio, em A Esposa; e no impossível de simbolizar presente em Hermano. Nos dois livros que completam essa série – Sade: filosofia de desejo e gozo e Enigmas da poesia amorosa de Dante –, os comentários visam a questionar as formas de tratamento do excesso encontradas em cada um deles.
Não deixem de ler! Aproveite para deixar seu comentário no nosso site.
Para fechar o OCI 06, há o clipe “La violência”, de Agarrate Catalina, que conjuga a presença forte dos instrumentos de percussão com uma letra viva da violência, que marca a dimensão de limite entre a fala e o ato violento.
Então, som na caixa e boa leitura!
LA HAINE¹, O ÓDIO
Sobre “O ódio”² de Mathieu Kassovitz
Viviana Mozzi (EOL)
vivimozzi@gmail.com
“Até aqui, tudo vai bem”, “até aqui, tudo vai bem”, repete para si mesmo um homem caindo do quinquagésimo andar: “o importante não é a queda, mas a aterrissagem”.
Podemos dizer que O ódio está filmado em treze episódios mais um. O primeiro mostra, na forma documentário, uma revolta produzida pelo disparo de um policial em um jovem, deixando-o em coma. A partir daí, os outros: 10:38, 12:43, 14:12, 15:47, 17:04, 18:22, 20:17, 22:08, 00:33, 02:57, 4:27, 06:00 e 06:01. Treze situações nas quais se mostram vinte quatro horas de três amigos em um bairro dos arredores de Paris: um judeu, um negro e um árabe. A imagem de um cartaz mostrado duas vezes, que diz Le monde est à vous³, contrasta radicalmente com suas possibilidades.
10:38 e um disparo. 06:01 e um disparo. Um disparo abre e fecha o filme em preto e branco que Mathieu Kassovitz filmou há mais de vinte anos e que ainda tem uma vigência absoluta. Não vou estragar a surpresa, dar spoilers, mas somente dizer que ele filmou de maneira preciosa cenas desoladoras, nas quais muitas vezes não se sabe se devemos prestar atenção à cena do primeiro plano ou à que está ao fundo.
Um dos primeiros efeitos de alíngua são os afetos⁴, e um deles é o ódio que, se bem parece ser um modo de ruptura dos vínculos, é também um dos vínculos mais fortes com o outro e seus objetos. De fato, Freud diz que se pode construir uma massa em relação ao ódio, modo esse que diz dos traços da segregação atual e que indica a ascensão das segregações com o ódio ao gozo do Outro, o que implica um desconhecimento radical do sujeito sobre si mesmo e seus gozos mais secretos. Com isso se vislumbra que, no ódio, se joga uma espécie de torção entre o rechaço ao Outro e ao estrangeiro em si mesmo.
Mas Lacan situa também uma face do ódio como lúcida, já que implica a dessuposição, e ela é condição de uma boa leitura. Seu neologismo “amódio” é não se deixar enganar tanto: “o Outro tem algo que nos interessa e dá na mesma o que é que possa ser (…). [É por isso que] se pode despertar em nós, todos os sentimentos”⁵. No ódio há algo mais que agressividade, “há uma consistência desta agressividade que merece o nome de ódio e que aponta ao real do Outro”⁶; dirige-se ao ser mesmo de alguém⁷, determina o ataque ao semblante.
“O ódio atrai o ódio”, diz Hubert, o negro do grupo. E o ódio surge em alguns momentos entre eles, e, em outros, com o Outro. Quase se poderia dizer que é “lógico”: jovens estrangeiros, segregados, pertencentes a uma sociedade que decai e que vaticina uma má aterrissagem.
Tradução: Maria Ruth Jeunon Sousa
Revisão: Paola Salinas
Notas
¹ N. T.: O ódio (em francês, no original).
² KASSOVITZ, M. O ódio. Filme. França, 1995.
³ N. T.: O mundo é de vocês (em francês, no original).
⁴ LACAN, J., (1972-1973) O seminário, livro 20. Mais, ainda. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p. 190.
⁵ MILLER, J.-A., (1998) La transferencia negativa. Buenos Aires: Tres Haches. 2000, pp. 74-75.
⁶ ____________ (1985-1986) Extimidad. Buenos Aires: Paidós. 2010, p. 53.
⁷ Lacan, J., Op. cit., p. 135.
AMÓDIO
Sobre “A esposa”¹ de Björn Runge
Angela Batista (EBP)
batista@imagelink.com.br
O filme A esposa, inspirado no livro de Meg Woltizer, traz uma questão muito importante para pensarmos o amor sem limites na sexuação feminina e suas afinidades com o ódio.
Joan, personagem interpretada por Glenn Close, encontra Joe, que havia sido seu professor de literatura na juventude e que a reconhece como escritora. Ela consente em lhe emprestar seu talento para que ele pudesse ter notoriedade, já que jamais seria reconhecida, na sua época, como uma mulher escritora.
Joan renuncia a seu desejo, sonhos e ambições para apoiar Joe, se apagando como autora de sua vida. Uma devoção feita pela personagem que guarda durante anos a dor de um segredo, que é escrever os livros para Joe.
Joan nos emociona com sua personagem ao mostrar as afinidades do amor com a loucura feminina, nas concessões que uma mulher pode fazer “de seus bens, de seu corpo e de sua alma”². Sabemos que amor e ódio se enlaçam, e Joan evidencia as consequências das concessões feitas, que não são sem restos de um intenso ódio.
Destaco no filme o tema do “amódio”³, neologismo criado por Lacan para mostrar que amamos e odiamos o mesmo objeto e como amor e ódio se enlaçam. No filme, Joan, ao se deparar com a decepção produzida pela sua escolha e resignação, resolve abandonar seu marido na noite do prêmio Nobel de literatura.
“A esposa” escolhe acompanhar seu marido como uma sombra cuja expressão silenciosa demonstra intenso ”amódio” como resultado de tantas concessões que tão bem ilustram o amor em sua face de devastação. O filme nos leva a trabalhar o tema da parceria amorosa através da demanda de amor de Joan e a função de suplência na vida erótica das mulheres, considerando o caráter erotomaníaco desse amor aberto ao infinito.
A personagem de Joan mostra como a ausência de um significante próprio à mulher já a predispõe a uma falta irredutível, que é sinal de uma decepção estrutural. A questão que quero ressaltar neste breve comentário é sobre a importância do parceiro- sintoma, pois, quando uma mulher se deixa devastar pelo amor, não há possibilidade de laço, sequer parceria.
É nesse sentido que um homem pode ser pior que um sintoma, quando não há limites para o gozo feminino. Uma mulher transita entre o todo e o não-todo fálico, mas a devastação incide sobre o sem limites dessa demanda.
Reconhecer os limites do amor permite a parceria que requer muito trabalho, pois o amor é solidário ao real, já que não há amor sem falta, e que, enquanto contingente, insiste mais ainda. E, na singularidade de cada vida, pode acontecer de novo, sem ser novamente.
Notas
¹ RUNGE, B. A esposa. Filme. Suécia e USA, 2017.
² LACAN, J. “Televisão”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2003. P. 538.
³ ________ O Seminário, livro 20: mais, ainda. Ibid. 1998. P. 122.
ACERCA DO ÓDIO
Sobre “Hermano – uma fábula sobre futebol”¹ de Marcel Rasquin
Hilema Suárez Castro (NEL)
hilema@gmail.com
Hermano – uma fábula sobre futebol, de Marcel Rasquin, narra a história de dois jovens irmãos de baixos recursos cujos sonhos de se transformarem em jogadores profissionais de futebol se veem obstaculizados pelo assassinato de sua mãe em circunstâncias próprias ao bairro. Esse é o elemento desencadeante de um ódio compartilhado que busca sua realização por meio da vingança.
Em uma cena, Daniel (o irmão menor) é testemunha presencial do assassinato acidental de sua mãe nas mãos de um colega da equipe. Daniel mantém em segredo a identidade do assassino para proteger seu irmão de ser morto por sua sede de vingança. Ironicamente, será ele próprio que buscará fazer justiça com suas mãos, pagando com sua vida. Nesse ato, vê-se arrastado pelo ódio e pela indignação. O que ele persegue com esse ato? Fazer pagar o que o outro não quer admitir?
Mais forte que o ódio, pulsão
Sabemos com Lacan que o ódio é a paixão que aponta para a destruição do ser do Outro, mesmo se esse Outro não é outra coisa senão a alteridade a si mesmo. Ele ensina que o singular, o incomparável de cada um, é difícil de alojar, para si mesmo, independentemente do sexo. Além disso, revela a captura no seu cárcere, do “todos iguais”, propriamente o regime do Um².
O ódio não é imaginário como a agressividade, mas real. Há um irredutível do ódio inclusive no amor. Lacan afirma a indivisibilidade do ódio e do amor, nomeando-o amódio.
Para Lacan, o ódio tem a ver com a exigência inabalável da pulsão de morte, questão que se desvela com clareza na trama do filme: Daniel não admite seu próprio ódio, tenta reprimi-lo em si mesmo e em seu irmão; entretanto, é ele quem termina por atuá-lo, demonstrando que não há barreira possível ante a pulsão de morte e o ódio, que comportam um impossível de ser simbolizado e estão sempre “fora do alcance do significante, que designa seu real”³. Poderíamos afirmar então que, mesmo que obscura e irreconhecível, a psicanálise se propõe como o tratamento indispensável para o ódio.
Tradução: Maria Ruth Jeunon Sousa
Revisão: Paola Salinas
Notas
¹ RASQUIN, M. Hermano – uma fábula sobre futebol. Filme. Venezuela, 2010.
² ARPIN, D. “Se odia desde entonces abiertamente y sin vergüenza”. Lacan cotidiano #35.
³ MILLER, J-A. Extimidad. Paídos, Buenos Aires, 2010, p. 50.
O QUE SE ODEIA É O GOZO DO OUTRO
Sobre “Zona Sul”¹ de Juan Carlos Valdivia
Ricardo Torrejón (NEL)
torrejon_er@hotmail.com
O modo de gozo do Outro e suas particularidades percorrem a trama do filme boliviano Zona Sul, de Juan Carlos Valdivia; ou seja, o que cada personagem faz com seus costumes, com seus gostos pela comida, com a vestimenta e com o dinheiro. A partir disso identificam-se, discriminam-se, odeiam-se e amam-se.
A zona sul da cidade de La Paz é considerada zona residencial das classes abastadas, ainda que atualmente seja uma região onde convivem as classes alta, média e popular.
O cenário do filme é a casa de uma família da mencionada zona sul. Ali se desenvolvem as relações particulares entre a “senhora” da casa, seus filhos e os trabalhadores domésticos de ascendência Aymara, dentre os quais destaca-se o protagonismo de Wilson, uma espécie de mordomo.
É no laço que os protagonistas fazem que se verifica o encontro e o desencontro de duas culturas a partir de seus modos de gozo. É o que Wilson diz dos k’aras (insulto dirigido aos brancos), que comem o “ají de fideos”² pouco picante; e o mesmo guisado é denominado “comida de cholo”³ pelo filho mais velho da casa.
O filme faz pensar nesse “Outro de dentro” no “país estrangeiro que é sempre país natal”, como diz Miller⁴. Os protagonistas parecem estar confinados nessa Zona: sempre dentro da casa, por detrás das janelas.
Esse modo de gozo do Outro, que é o fundamento do ódio, é o ódio ao próprio gozo e, por isso, esses personagens, ainda que estejam em casa, sempre desejam não estar. É preciso sair da Bolívia; não há futuro; há algo alheio no próprio lar.
Esse confinamento não é garantia para afastar o gozo estranho. Sua universalização e a tentativa de uniformizá-lo só acrescentarão ódio e segregação.
O mestre da vez na Bolívia, localizado no discurso universitário, pretende generalizar uma forma de gozo: “indianizar os brancos e mestiçar os índios, criar um novo universal”⁵. Mas essa tentativa não leva em conta que há algo que não muda, que permanece e é o real do gozo. E que resistirá frente às tentativas do mestre de alcançar essa semelhança, essa construção de um novo universal. O resultado será a exacerbação do ódio.
Tradução: Flávia Machado Seidinger Leibovitz
Revisão: Paola Salinas
Notas
¹ VALDIVIA, J. C., Zona Sul. Filme. Bolívia, 2009.
² N. T.: Comida típica boliviana, literalmente ‘pimenta de macarrão’, em português. Prato à base de macarrão com ingredientes variados e bastante pimenta.
³ N. T.: Segundo o Dicionário RAE: mestiço de sangue europeia e indígena.
⁴ MILLER, J.-A. Extimidad. Paidós, Buenos Aires, 2011, p. 43.
⁵ LINERA, A. G., “Pensando el mundo desde Bolivia. II Segundo ciclo de seminarios internacionales”, Vicepresidencia del Estado Plurinacional, La Paz, 2012, p. 37. Disponível em: https://www.vicepresidencia.gob.bo/IMG/pdf/tomo_ii_pensado.pdf
SADE: FILOSOFIA DE DESEJO E GOZO
Sobre “A filosofia na alcova”¹ de Marquês de Sade
Maria Bernadette S. de S. Pitteri (EBP)
m_bernadettep@yahoo.com.br
Não deixa de ser enigmático que o “divino marquês”, autor de A filosofia na alcova, seja hoje um clássico. Cativo durante parte da vida, sua obra veicula ataques radicais aos poderes constituídos, num apelo à natureza enquanto guia de ação.
Lacan coloca Sade e Kant numa posição dialética, de inspiração hegeliana, visto que ambos retrataram a crise ética² que explode no momento em que a física newtoniana mostra um ponto de independência em relação a das Ding³. Das Ding, oracular, lei do capricho, do arbitrário, não oferece apoio ao sujeito, devendo ser contornada e nunca vilipendiada, como o faz Sade, que desrespeita até o tabu do incesto.
A universalidade do imperativo categórico formulado na Crítica da razão prática⁴ “(…) age de tal modo que a máxima de tua vontade possa sempre valer como princípio de uma legislação que seja para todos” é consequência da teoria do conhecimento de Kant, na qual o sujeito, limitado ao fenômeno, deixa de fora o noumenon, o que o força a agir desconsiderando o objeto: nenhum Bem entra na finalidade da ação moral. Ao imperativo kantiano corresponde a máxima que Lacan extrai da obra de Sade, “tomemos como máxima universal de nossa ação o direito de gozar de outrem, quem quer que o seja, como instrumento de nosso prazer”⁵.
Kant e Sade visam ao universal e buscam eliminar o patológico ligado ao singular e seus objetos; invalidada a moral e afastados os afetos, “de modo extremo o mundo sadista é concebível – mesmo que ele seja seu avesso e sua caricatura – como uma das efetivações possíveis do mundo governado por uma ética (…) kantiana”⁶. Nenhuma aplicação social é factível, dado o impossível de eliminar os afetos ligados ao singular.
Sade, em sua obra, atua o negativo da neurose da forma mais crua, repetitiva, golpeando das Ding e, na tentativa de anular o ódio de si, desperta afetos de cólera e indignação num encontro não faltoso.
Estudar Sade hoje? Sinais dos tempos!
Notas
¹ SADE, D. A. F., Marquês de. A Filosofia na Alcova. Salvador: Ed. Ágalma, 1995.
² LACAN, J. O Seminário, livro 7, A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997. p. 67.
³ _______ Ibid. Capítulos 4 e 5.
⁴ KANT, I. Crítica da Razão Prática. Rio de Janeiro: Edições e Publicações Brasil Ed., 1967.
⁵ LACAN, J. Op. cit. p. 100.
⁶______ Ibid., p. 101. ________ “Kant com Sade”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
ENIGMAS DA POESIA AMOROSA DE DANTE
Sobre “A Divina Comedia”¹ de Dante Alighieri
Cecilia Rubinetti (EOL)
cerubinetti@gmail.com
Ódio, cólera, indignação. Inundam a lógica dos acontecimentos, cada um com sua modalidade particular de excesso, afligem o corpo e traçam suas marcas indeléveis. São marcas sobre as quais volta-se uma e outra vez, revivendo seu patetismo pleno de um sentido imutável, sempre idêntico a si mesmo.
Qual tratamento uma análise pode oferecer a essas modalidades do excesso que voltam sempre ao mesmo lugar? No “Seminário 24”, Lacan situa o horizonte de um esvaziamento possível e o poeta sendo aquele que nos ensina a esse respeito. Lá, localiza a façanha de esvaziar uma vertente de sentido introduzindo um vazio em sua duplicidade intrínseca.
“Como o poeta pode realizar essa façanha, de fazer com que um sentido esteja ausente?
Substituindo esse sentido ausente pela significação. A significação não é o que as pessoas comuns acreditam. É um termo vazio. É o que se expressa no qualificativo colocado por Dante sobre sua poesia, a saber, que ela seja amorosa”².
Como tentativa de rastrear aquilo que Lacan encontra na poesia da Divina comédia, escolhi um canto paradigmático, aquele que relata o encontro de Dante com o Conde Ugolino. Ugolino começa seu monólogo testemunhando a dilaceração produzida nele pelo convite a colocar sua experiência em palavras – “Você quer que a amarga dor, que me aflige só de pensar nisso, se renove, antes mesmo que disso eu fale”³. –, palavras que poderiam descrever a perturbação implícita na estrutura de uma sessão analítica.
O que se pode ler nas entrelinhas do tratamento poético que Dante faz do pecado de Ugolino? As palavras que Dante faz Ugolino dizer veiculam a ferocidade do ódio, a dor dilacerante do confinamento à fome, dele e seus filhos, e o terrível limiar de sua morte. O excesso em jogo no pecado pelo qual foi condenado ao inferno apenas aparece a partir de uma alusão poética que, com sua equivocidade, introduz um vazio numa das vertentes que toma o sentido. Esse esvaziamento drena o patetismo mesmo de seu excesso. Não há remissão que desresponsabilize, não torne ausente nem relativize o horror do crime. No entanto, o efeito de vazio introduz um modo de tratamento desse plus que o descompleta: “Dois dias lhes chamei ainda que estivessem mortos: depois, mais do que a dor, pôde a agonia”⁴.
Borges retoma esse canto em um de seus Nove ensaios dantescos e se detém justamente neste ponto: “Nas trevas de sua Torre de Fome, Ugolino devora e não devora os amados cadáveres, e essa ondulante imprecisão, essa incerteza, é a estranha matéria do que está feito”⁵. Aí onde Borges enfatiza a equivocidade, Lacan situa o esvaziamento, o efeito Não-Todo. Permite repensar o amor, a transferência mesma e a interpretação analítica a partir dessa vertente suportada por um gozo Outro.
Tradução: Maria Rita Guimarães
Revisão: Glacy Gorski
Notas
¹ ALIGHERI, D., A Divina Comedia. Versão digital eBooksBrasil.org. Tradução José Pedro Xavier Pinheiro (1822-1882). Reedição eBookLibris. Abril 2006. http://www.ebooksbrasil.org/nacionais/ebooklibris.html
² LACAN, J., “O Seminário, Livro 24” (inédito). Lição 10 de 15 de março de 1977.
³ ALIGHIERI, D., “Inferno”. Canto XXXIII. Op. cit.
⁴ ________. N.T: No texto em espanhol, a citação da autora traz a palavra ayuno (“Dos días les llamé aunque estaban muertos: después más que el dolor pudo el ayuno”), em português, jejum. Na versão utilizada em português referida em Inferno Canto XXXIII, verso 75, a palavra é agonia. (“Da fome mais que a dor, pôde a agonia”.).
⁵ BORGES, J. L., Nove ensaios dantescos. Lisboa: Editora Presença, 1984, p.37.
Ana Lydia Santiago pergunta a Éric Laurent (Parte 3)
Você pode falar algo sobre a complexidade da tríade amor/ódio/ignorância na atualidade, para além do que se constitui a transformação do amor em ódio?
Ana Lydia Santiago pergunta a Éric Laurent (Parte 4)
Os religiosos e os filósofos, de maneira geral, referem-se à cólera ou como um desejo de vingança, ou como uma superioridade excessiva e imaginária. Na atualidade, o que observamos como expressão de cólera, sobretudo entre os jovens, pode ser definido a partir da linguagem performativa, como a afirmação em forma de uma ameaça − do tipo “Eu te mato!” ou “Você está morto!” −, que provoca certa paralisação no outro. Uma fala que produz algo no outro − no caso, gera medo e produz inibição.
Henri Kaufmanner pergunta a Éric Laurent (Parte 4)
A partir do que você introduziu a respeito da ignorância, a cólera não se constitui um retorno do que persiste mais além da ignorância? Conforme diz Lacan, na cólera, “os pininhos não entram nos buraquinhos” algo não funciona.
AGARRATE CATALINA
Por Fabíola Ramon
A murga Agarrate Catalina é uma das principais referências culturais do Uruguai. A murga é um gênero coral-teatral, espécie de ópera popular com forte presença de instrumentos de percussão com origem no festival de carnaval. Agarrate Catalina transcendeu as fronteiras do carnaval, unindo a tradição e o contemporâneo a partir de temas atuais.
O clipe “La violencia”, de Agarrate Catalina em parceria com a banda de rock No Te Va Gustar, nos ajuda a compreender a dimensão de limite da fala presente nos atos de violência, ponto importante de distinguir em relação à paixão do ódio.
Esse polêmico clipe é um fragmento de Gente comum, espetáculo apresentado no carnaval de 2011. Agarrate Catalina coloca a violência para cantar em primeira pessoa e a mostra ecoando nos estádios de futebol, nos becos, nas superlotações dos presídios, nos insultos, na boca dos ladrões, nos cassetetes dos policiais, enfim, na vida vivida à margem que revela uma suspensão do pacto simbólico, aquilo que transborda e retorna no real, apresentando-se a partir de atos que revelam o fracasso da lei, a fragilidade do laço social e os limites da fala.
Em um dos trechos da música, a violência berra: “Yo soy el error de la sociedad, soy el plan perfecto, que ha salido mal”.
No Seminário 5, Lacan pontua algo importante sobre a violência e os limites da fala:
“Para relembrar coisas de evidência primária, a violência é de fato o que há de essencial na agressão, pelo menos no plano humano. Não é a fala, é até exatamente o contrário. O que pode produzir-se numa relação inter-humana são a violência ou a fala. Se a violência distingue-se em sua essência da fala, pode colocar-se a questão de saber em que medida a violência como tal – para distingui-la do uso do termo agressividade – pode ser recalcada […]”¹.
Confira “La Violencia”
Para Textos Preparatórios: Aqui
Para Referências: Comentadas e Bibliográficas
Para Envio de Trabalhos: Aqui
Para Inscrições: Aqui