Boletim OCI – 7 – Textos e Entrevista É. Laurent (Partes 5 e 6)
Henry Kaufmanner (EBP)
kaufmanner@gmail.com
Bem vindos ao Boletim OCI, que chega a seu número 7.
Nele, nossos colegas continuam no enfrentamento do desafio proposto pelo IX ENAPOL: como lidar com Ódio, Cólera e Indignação a partir da psicanálise?
Na Seção “A priori”, encontraremos textos que perpassam a eternização do ódio, a familiarização do racismo e uma pergunta sobre o papel da indignação na trajetória de uma análise.
Em “Linkando”, encontramos que a psicanálise faz, do selvagem, relatos; interroga o ódio que surge a partir do sentimento identitário; revela como o amor pode tratar o ódio e a indignação e também ressalta a importância ética da indignação.
Nesse número de OCI, encontram-se, ainda, os dois últimos vídeos da importante entrevista de Éric Laurent, que nos fala da indignação como a possibilidade de um laço a partir do grito e aponta a dimensão mortífera que pode ter um discurso.
Finalmente, no clipe de “Indignação”, um reggae da banda brasileira e mineira Skank, somos embalados em um voo, que supera a imobilidade primeira da indignação.
Que tenham um boa leitura e movimentação neste novo OCI!
Lembramos ainda que o prazo para a entrega dos trabalhos para as mesas simultâneas foram prorrogados.
Assim, inscrevam-se e escrevam!
ÓDIO ETERNO
Anna Carolina Nogueira e Ondina Machado (EBP)
annacarolinapn@gmail.com e ondinamrm@gmail.com
Lacan retira os afetos do campo das emoções para colocá-los no campo da ética, e com isso inclui neles o pensamento e a linguagem. A ética diz respeito ao desejo, a quanto se está ou não orientado por ele. Se colocados no campo das emoções, ao afeto só restaria a catarse. Também pela ética, deduzimos o quanto de saber está na base dos afetos. Supor saber causa desejo, já o saber aliado ao poder faz do sujeito objeto de gozo do Outro.
Na relação amorosa, vemos as diferentes possibilidades dos afetos, seus deslocamentos e mutações. Tiburcia nos guiará pelos meandros das paixões do ser, mostrando como as decisões e a circularidade dos afetos determinam uma vida para além da morte.
Com a morte iminente da mãe, Tiburcia Domínguez (1814-1898) se casa, aos 17 anos, com Salvador María del Carril, jurista de 33 anos 1.
Mudanças políticas levaram o casal ao exílio no Uruguai. Tempos difíceis, nos quais vendiam o sabão que faziam na banheira para sustentar os 7 filhos. Passados 20 anos, os ventos da política os levaram de volta à Argentina, dando início a uma trajetória de grande enriquecimento.
Salvador se destacou nos negócios, foi dono de grandes extensões de terra e ocupou cargos políticos importantes, chegando a ser o Primeiro Vice-presidente da Argentina recém-independente.
A penúria foi suportada pela aliança entre a valentia de Tiburcia e a austeridade de Salvador. O que em um momento uniu, em outro, destruiu.
Rica, muito rica, Tiburcia gozava da fortuna conquistada fazendo gastos considerados exorbitantes pelo marido. Podemos entreouvir as discussões: “Você vai nos levar à ruína!” “Deixe disso, homem, depois de tudo o que passamos? Que mal há?”. O ilimitado do gozo feminino pode verdadeiramente assustar um homem, que, ao seu estilo, poderá tentar usar a régua fálica para controlá-lo.
Num gesto extremo, o marido publica nos jornais de Buenos Aires um aviso aos comerciantes comunicando que, a partir daquela data, não seria mais responsável pelos gastos da mulher. Esquecera-se, porém, da coragem de Tiburcia. A exposição pública tocou um ponto, até então, insondável de seu gozo singular que nem a pobreza alcançou.
Ferida em sua dignidade, Tiburcia observa, a partir daí, o mais absoluto silêncio em relação ao marido, sequer fala com os filhos quando Salvador está presente. Priva-o e goza.
O silêncio eloquente demonstra o inarredável de seu ser; submete-se aos limites fálicos sem, contudo, aceitá-los. Para viver, ela renuncia a usufruir de seus bens, mas mantém a dignidade de os possuir. Adia o gozo dos bens para gozar do silêncio até que, 21 anos depois, Salvador morre.
Só lhe ocorre perguntar: “Já posso começar a gastar?”. Viúva, passa a gozar do que lhe fora negado. Mas não é só: manda construir um luxuoso mausoléu no cemitério da Recoleta, onde Salvador figura imponentemente sentado em uma cadeira de espaldar alto, ao redor da qual ela caminhava dizendo: “agora você está aí, e eu posso me divertir”. Sim, agora é ele quem está calado, para sempre.
O que parecia uma homenagem, mostra a força do ódio nascido de uma indignação. Como se não bastasse viver a viuvez na opulência, Tiburcia perpetra um ato final que, com sua dramaticidade, demonstra a lucidez e a aderência próprias ao ódio. Ao morrer, 15 anos depois do marido, deixa instruções detalhadas de como deveria estar disposto, no mausoléu, seu busto em relação à estátua do marido: de costas para ele. Em suas palavras, “Não quero olhar na mesma direção que meu marido por toda a eternidade…”. A eternidade tornou-se sua cúmplice: fez dela personagem principal de um drama/comédia, relegando Salvador a seu coadjuvante.
Uma afronta ao ser pode fazer laço, porém a decisão da renúncia deu consistência ao Outro como aquele que quer gozar do sujeito. A indignação parece, nesse caso, ter servido de combustível a um ódio que permanece para além da morte.
Notas
¹ BALMACEDA, D. Romances turbulentos de la historia argentina. Buenos Aires: Sudamericana, 2017.
A INDIGNAÇÃO, O INDIGNO
Mónica Pelliza (NEL)
monipelliza@yahoo.com
A indignação é uma paixão que não foi submetida a demasiadas elaborações. Partindo do conceito de dignidade, o Pequeno Larousse Ilustrado refere a “funções elevadas; nobreza nos modos e respeito por si mesmo”.
A indignação, segundo o dicionário, faz referência a um sentimento de raiva provocado por um ato que se considera injusto, ofensivo ou prejudicial.
Chama a atenção que seja sinônimo de “baixeza, desonra, no sentido de ação digna de rechaço, que ofende”. Enquanto emoção, a indignidade é análoga à “raiva, ira”.
No argumento do Encontro IX do ENAPOL¹, a indignação é colocada como uma das paixões do ser, paixões do laço com o Outro, mais próxima a ignorar o Outro no que pode representar um ataque ao ser e indigna. A indignação surge quando nossa singularidade é posta em questão. Singularidade e dignidade se comprometem e se enlaçam.
Em “A salvação pelos dejetos”², Jaques-Alain Miller coloca que a psicanálise focaliza e põe a trabalhar os dejetos: sonhos, lapsos, fantasias, sintomas etc. Dá-se conta de que, até o momento, buscou-se a salvação pelos ideais. O dejeto é o que cai, o que se desprende daquilo que, por outro lado, se eleva; é extraído da totalidade, um pedaço, uma peça solta.
A dignidade é solidária a um gozo socializado, integrado ao laço social. O gozo cru, sem revestimento, segue Miller, é rebaixado à indignidade dos dejetos.
O digno está associado a elevar, à sublimação, aos ideais. Observa-se que o digno implica um tratamento do gozo. Enquanto o indigno está ligado ao resto, ao que cai, aos dejetos.
Como se constrói o laço com o Outro? A partir da fantasia, podemos pensar em um motor que produz e fixa um sentido, uma narrativa na vida do sujeito, e que alimenta o que se adquire no sintoma. É a janela que articula e engancha o sujeito com o Outro. O ser no mundo toma seu eixo do axioma da fantasia, verdadeiro universal que designa o Ser. Desse ponto de vista, a queda do objeto a em “O Ser e o Um”³, como expõe Miller, “é exatamente uma queda no registro do fora de sentido; deixa de haver objeto a enquanto produtor de sentido”.
Essa identificação do ser com o objeto a no enquadre da fantasia, identificação com aquilo que é rechaçado, que não é merecedor, repleto de sentido e de ficção, fixação a um gozo masoquista, vitimizado, entre outros, é aquilo que pode ser considerado indigno. Abandonar o sentido indigno na fantasia com a queda do objeto a nos introduz ao Um do gozo.
Por acaso a indignação poderia ser considerada, em alguns momentos, como um motorzinho que empurra para a travessia da fantasia?
Essa queda do objeto a é uma queda no registro do fora de sentido. Miller dirá: “de agora em diante, nossa experiência põe o analisante em luta com aquilo que de seu gozo não produz sentido, com o que permanece além da queda do objeto a, com o Um do gozo”⁴.
Um corpo que se goza, Há Um, são correlativos a Não há Relação Sexual, e isso marca uma direção no tratamento. Estabelece uma política e uma clínica do sintoma, para além das paixões do Ser, para aceder à opacidade do Um do gozo.
Considero o indigno associado à fantasia enquanto o Ser compromete uma identificação com o objeto a, ao dejeto. O digno, como paixão, estaria associado ao tratamento do gozo que cada parlêtre inventa para se alojar na e com a vida; é a invenção de um estilo enlaçado ao sinthome.
Tradução: Ruth Jeunon
Revisão: Paola Salinas
Notas
¹ Disponível em: https://ix.enapol.org/argumento/
² MILLER, J.-A. “A salvação pelos dejetos”. In: Correio, Revisa da Escola Brasileira de Psicanálise, nº 67, 2010.
³ ___________ “O Ser e o Um”. Aula de 30 de março de 2011. Inédito.
⁴ ___________ Ibid.
O RACISMO FAMILIAR
Diana Wolodarsky (EOL)
dwolodarsky@gmail.com
“O sujeito como tal, definido pelo seu lugar no Outro, é um imigrante. Não definimos seu lugar no Mesmo porque só tem lar no que é do Outro”¹.
Do ENAPOL 2019, escolho tomar a paixão do ódio, tal como o vemos expresso nos fatos da atualidade.
Lacan ofereceu um olhar renovado, não somente da época, como também das consequências para o futuro, a partir da perspectiva do avanço dos discursos capitalista e da ciência, localizando-os como causas da segregação e do racismo.
As manifestações grupais virtuais ou reais, conduzidas por um novo triunfo das religiões e de uma progressiva “direitização” de discursos, “obedecem à tentativa de restituir ao Outro?”². Ressalto essa pergunta do argumento.
Este ENAPOL avança na orientação dos anteriores e recolhe a indicação de não nos distrairmos dos efeitos causados nas subjetividades.
Comentarei em algumas linhas a problemática de uma jovem proveniente de um circuito de poder econômico que, apesar de religioso, é mais crente do que praticante. “Nada é impossível” seria um lema que corresponde a um leque de acesso a infinitas possibilidades.
Esse campo incomensurável a impede de optar, resultando que não haja lugar para perda. Uma escolha amorosa se impõe. Um é eleito fazendo limite à sua falta de medida. Contudo, ela saberá reservar uma economia libidinal a serviço do amor ao pai, em quem crê religiosamente.
De seu relato, se escuta um ponto fixo perturbador que não cede. Refere-se a uma figura familiar de perto dizendo que “nascemos muito próximas”.
O ódio e o desejo de morte possuem uma vitalidade notável. Aquela encarna quem porta as insígnias da beleza do ideal d´A mulher. É dócil e compatível com a família tradicional da qual nosso sujeito tenta se separar. A intensidade do ódio a consome, tanto na fúria quanto na culpa. Como consequência, apesentam-se pensamentos perturbadores como castigo. A luta para conquistar olhares de reconhecimento a leva a sacrifícios inúteis.
No “próximo”, um ponto de real se apresenta. Os pensamentos a obsessionam e a angústia se relaciona à posição de dejeto. A outra a eclipsa, tornando opacos seus sucessos e sua satisfação.
Entre imaginário e real, o ódio
Miller, no seu curso Extimidade, coloca que a intolerância ao gozo do Outro se produz na medida em que se supõe que é ele quem está subtraindo o gozo do sujeito: “Este roubo de gozo o abreviamos escrevendo –fi, matema da castração”³.
Ele também nos orientou a inscrever o ódio entre imaginário e real. “No ódio ao Outro, que se conhece através do racismo, é certo que existe algo além da agressividade. Há uma consistência dessa agressividade que merece o nome de ódio e que aponta ao real no Outro”.
Interessa-me sublinhar o aspecto de “consistência” que aponta ao real no Outro. É o Outro dentro de mim raiz do racismo: o ódio ao próprio gozo que o semelhante estrangeiro presentifica.
Desapegar-se da potência do olhar abre a possibilidade de diluir a crença no Outro, e, nessa medida, a servidão a esse olhar. Operação que não é possível sem que a barra da castração caia sobre o deus pai e A mulher.
Transgredir o programa de gozo tem efeitos que retornam sobre o sujeito: poderíamos nomeá-lo de um racismo familiar.
Um afeto de segregação.
Poderíamos arriscar dizendo que isso a faz participar de outra língua? A torna estrangeira desse Outro?
O horizonte do não-há dá lugar ao desejo singular e a anima a ir ao encontro do parceiro, mais livre de pensamentos.
Ainda que, de tempos em tempos, se faça escutar o afã em restituir consistência ao Outro. O analista encarna esse Outro da transferência, cuja posição está feita essencialmente de objeto a. Sua função de extimidade se orienta a produzir uma reversão necessária: a passagem da consistência suposta ao Outro à consistência lógica do objeto a.
Supõe o trabalho de esvaziamento de sentido e o concomitante acesso a um desejo singular.
Tradução: Glacy Gorsky
Revisão: Paola Salinas
Notas
¹ MILLER, J.-A. Extimidad. Buenos Aires: Paidós. 2010, p. 53.
² N. E.: Disponível em: https://ix.enapol.org/argumento/
³ MILLER, J.-A. Ibid., p. 53-55.
SELVAGENS COM RELATO
Sobre “Relatos Selvagens”¹ de Damián Szifron
Beatriz Udenio (EOL)
beudenio@gmail.com
O título prenuncia o que se segue: um vislumbre do tema do próximo ENAPOL a partir do filme dirigido por Damián Szifron, Relatos selvagens.
“Selvagens” seria, talvez, a via de entrada mais evidente. Há, em seus seis episódios, cólera, ódio e indignação estridentes. Mas elejo “com relato”.
Não é o mesmo o selvagem – do ser falante – com relato ou sem ele. Aflora em um texto e também em um filme – feito de imagem e texto. Evoquemos Roland Barthes nisto: contamos com o narrador; logo, com o autor – o que lê, vê, escuta, e interpreta segundo sua subjetividade e historicidade. O narrador oferece determinados fatos, monta um espetáculo, capta olhares. E o autor vai interpretando segundo sua trama subjetiva.
Numa psicanálise, o narrador que constrói um relato se dirige a outro ao qual queria supor autor mas, na realidade, por mais “selvagem” que seja o evocado, será somente cada analisante-narrador que poderá se tornar autor de seu relato, situando sua ordem lógico-estrutural para finalmente quebrá-la, no limite, onde brota o sem sentido. E o sem saber, o sem identificações, o sem modelos. Assim, o analista far-se-á parceiro desse trajeto de relatos até o ponto do salto a esta dimensão desconhecida: êxtima.
A psicanálise, diferentemente do cinema ou da fotografia, não se oferece como ilusão², vestindo o trauma. Pelo contrário, um analista tenta provocar o falante até roçar o limite do dizível e a suspensão do efeito cativante da imagem, enfrentando o efeito unheimlich, seu ruído inaugural. Ali onde os relatos cessam.
O filme de Szifron é um divertimento. Cada episódio se resolve provocando o riso ou o horror, convidando ao alívio da identificação com tal ou qual personagem, satisfazendo-se nessa possibilidade. Há humor, mas não é o de Beckett: corrosivo, raro, burlão, ridículo, absurdamente hilariante, que faz chiado entre os sons da língua, e que, palpitando entre as palavras eleitas, segue adiante. É um humor não óbvio; não o encontramos onde o esperamos, por isso é desesperador ao nos surpreender. Um discreto humor “odd”³ – estranho, bizarro, extravagante – mais próximo da psicanálise.
No filme, o inesperado carece dessa ácida desesperança que o humor conjura. É predizível como tratamento do selvagem. A psicanálise abre ao não predizível. O Witz do sinthoma é contingente, impossível de predizer, singularíssimo e nada épico. Não promete salas cheias de espectadores com isso.
Tradução: Ruth Jeunon
Revisão: Paola Salinas
Notas
¹ SZIFRON, D. Relatos Selvagens. Filme. Espanha – Argentina. 2014.
² N.T.: Trampantojo, no original, que quer dizer ilusão, mas contém a palavra armadilha, trampa, em espanhol, em sua escrita.
³ N.T.: Estranho (em inglês, no original).
Alguns episódios de ódio em Roma, o filme
Sobre “Roma”¹ de Alfonso Cuarón
Stella Jimenez (EBP)
stjimenez@terra.com.br
O ódio, cujo substrato é a pulsão de morte, é detonado facilmente por diferentes razões: o medo, a inveja, a decepção, a reação insensata diante da fantasia do gozo do Outro.
Mas acho que o mais absurdo é o sentimento identitário. Para desenvolver essa ideia, uso alguns fragmentos do filme Roma, de Alfonso Cuarón.
Cleo, a protagonista, vive a vida do que atualmente se denomina uma das formas de escravidão contemporânea. Trabalha para uma família que a trata com muitíssimo carinho. Mas trabalha de manhã até de noite, obviamente sem salário, em troca de casa e comida. Dorme em um quarto pequeno, no terraço da casa, apesar de a casa ser muito grande. É muito querida, mas muito desconsiderada. Numa cena do filme, fica evidente que a família não tem ideia da idade da jovem criada. Existe prova maior de despersonalização de um ser humano? Com esses traços sutis, o diretor do filme introduz a questão: Cleo é cuidada e querida como um sujeito de pleno direito ou como uma propriedade?
É emocionante e de grande valor o trabalho de Cuarón ao resgatar a dimensão subjetiva existente e ignorada daquela que fora a sua babá da infância.
Cleo estabelece uma relação amorosa com Fermín, um jovem índio de origem, tal como ela. Fermín vive numa favela miserável, mas pratica artes marciais, o que parece ser determinante para sua posição subjetiva. “As artes marciais me salvaram”, ele confessa.
Então, quero pensar sobre o ódio que Fermín demonstra por Cleo quando ela lhe anuncia que está grávida, ódio que parece maior que simplesmente aquele de um jovem que só quer fugir de suas responsabilidades. Numa cena do filme, ele a chama de “pinche rata”, frase que foi traduzida como “faxineira de merda”, mas que literalmente significa algo assim como “desprezível ratazana”.
Desde que lugar Fermín sente tal ódio em relação àquela com quem tem tantas semelhanças? Possivelmente a partir de uma identificação, pervertida em sentimento identitário, com os donos do poder que teriam lhe transmitido a possibilidade de matar.
É o mesmo ódio que Fermín demonstra ao matar estudantes que defendem interesses que deveriam ser também os dele. O filme representa um massacre acontecido durante uma passeata na Cidade de México em 1971. O país estava convulsionado porque as prefeituras e os fazendeiros invadiram terras dos camponeses, o que revoltou os estudantes.
É o mesmo ódio que mostram no Brasil os policiais negros quando participam do genocídio aos jovens negros das periferias.
Notas
¹ Cuarón., A. Roma. Filme. México, 2018.
O SORRISO ETRUSCO: UM TRATAMENTO PELO AMOR E PELO FEMININO
Sobre “O sorriso etrusco”¹ de José Luis Sampedro
Paula Iturra (NEL)
paula_iturra@yahoo.es
O romance O sorriso etrusco, de José Luis Sampedro, leva-nos pela mão à intimidade dos últimos meses de vida de Salvatore Roncone, camponês e partigiano calabrês que, por sua enfermidade, deve se mudar para a cidade de Milão, para a casa de seu filho, onde conhece e descobre seu pequeno neto.
Os combates contra os fascistas aparecem como lampejos na vida de Roncone, lembranças que de vez em quando começam a ser vividas com as atuais. Uma vida pobre e dura no campo na infância, um fazer-se homem nas batalhas, vigilante e desconfiado, levado muitas vezes pela cólera, a realizar façanhas valentes para defender seus companheiros, laços que lhe permitem fazer-se um lugar no mundo, e apaixonado pelas mulheres. Conheceu a morte muito cedo e muito de perto.
Nessa última batalha, a vida o surpreenderá com encontros inéditos. Esse homem duro, por vezes hostil, indignado pelo modo de viver na cidade, começa a suavizar-se e a amar de outra maneira. Uma desconhecida ternura o percorre e o impele a cuidar de seu neto Brunettino, a velar seu sono, a transmitir-lhe como é o mundo e a vida, como ser um homem e como são as mulheres.
O amor por uma mulher lhe chegará acidentalmente quando passeia com a criança. Assim se tece o amor por Hortensia e por Brunettino, seu olhar se detém nela como mulher e com o anseio de uma avó que continue com seu legado:
“(…) Eu nasci num terreno pedregoso e não me queixo, cheguei a me endireitar sozinho. Mas poderia ter florescido melhor… (…) Isso mesmo, florescer. Eu acreditava que era coisa de mulheres, que o homem é somente tronco, quanto mais forte melhor. Mas, por que não flor? (…) Tinha razão, agora não estou tão certo de algumas coisas, agora te digo. Quando iria eu pensar que o homem também floresce!”²
Um homem se deixa tocar pelo amor e, quase no final, aparece um desejo renovado, uma força vital que desafia o saber médico.
O que podemos dizer do amor?
O amor toma então não só a função de véu, mas uma função de enodamento, ao permitir enlaçar o gozo com o Outro. O amor, com a habilidade de um ilusionista, é capaz de produzir o que Lacan chama, em “A carta roubada”, um efeito de ficção verdadeira, “ao fazer que um ser de sua ficção nos engane verdadeiramente”³.
Tradução: Ruth Jeunon
Revisão: Paola Salinas
Notas
¹ SAMPEDRO, J. L. O Sorriso Etrusco. São Paulo: Martins Fontes Editora. 1997.
² ________________ Ibid.
³ TARRAB., M. “Dos comentarios sobre el amor”. In: Revista Virtualia. #36, Março 2019, ano XVIII. Disponível em: http://www.revistavirtualia.com/articulos/826/el-amor-y-la-epoca/dos-comentarios-sobre-el-amor
HOLOCAUSTO E INDIGNIDADE HUMANA
Sobre “Indignai-vos”¹ de Stéphane Hessel
Irene Greiser (EOL)
irenegreiser@gmail.com
Indignai-vos é um texto que Stéphane Hessel, sobrevivente dos campos de concentração nazista, escreve aos 93 anos, entre a pressa da morte e o desejo de deixar um legado aos jovens de hoje. Surge da sua indignação ao ver caírem os ideais da Declaração Universal dos Direitos Humanos, herança do genocídio nazista, confirmando que, debaixo do pacto, habita o crime. Também ressoam as palavras de Miller “Não há nada mais humano que o crime”². Hessel dirige seu chamado a uma insurreição pacífica, a trocar a indiferença pela indignação.
No seminário A ética da psicanálise³, em referência à sublimação, Lacan diz que o objeto é elevado à dignidade da coisa. Se elevar um objeto à dignidade da coisa faz a dignidade do objeto, reduzir o sujeito à coisa leva à indignidade humana.
O campo de concentração inaugura um espaço bipolítico, no qual os sujeitos perdem o estatuto jurídico de pessoas. Reduzidos a uma coisa enumerada, despojados de sua humanidade. Se Lacan toma como referência os campos de concentração, em nada mais, nada menos que a “Proposição de 9 de outubro de 1967”⁴, é porque a Guerra ensinou algo à psicanálise.
Se a indignação como afeto o é em relação à ignorância da singularidade, núcleo do ser, o Holocausto constitui o paradigma dessa destruição. Indignar-se diante disso constitui um preceito de ordem ética para um analista. Osvaldo Delgado⁵ aponta a conotação indigna do sorriso do General Videla, que, diante da pergunta pelos “Desaparecidos”, respondeu que não estão vivos nem mortos.
Notas
¹ HESSEL, S (2011). Indignai-vos!. Rio de Janeiro. Leya Casa Da Palavra.
² MILLER, J.-A. (2008). “Nada es más humano que el crimen” In: Virtualia, Revista Virtual de la EOL, n. 18, octubre/noviembre 2008. Disponível em http://www.revistavirtualia.com/storage/articulos/pdf/nFnC6P2tfp0cLfh3bTszZwec7bLbbC68H2zcgRJe.pdf.
³ LACAN, J. O Seminário, Livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
⁴ ________ “Proposição de 9 de outubro de 1967”. In: Outros Escritos. Ibid. 2003.
⁵ DELGADO, O. La indignidad del Estado terrorista argentino. Consecuencias subjetivas del terrorismo de estado. Grama ediciones, Buenos Aires, 2015.
Ana Lydia Santiago pergunta a Éric Laurent (Parte 5)
Quanto à indignação, geralmente um sentimento experimentado diante de uma injustiça intrínseca a um ato, estamos tendendo a situá-la como simbólica, diferentemente da cólera e do ódio. Essa avaliação é justa?
Ana Lydia Santiago pergunta a Éric Laurent (Parte 6)
Ainda em relação à cólera, gostaria de retomar o que tem surgido muito frequentemente em grupos, mas que é endereçado a alguém, no plano individual, que é a ameaça de eliminação − tipo “Vou te matar!”
SKANK
Por Fabíola Ramon
A banda mineira Skank problematiza a relação emaranhada entre indignação, laço social e ato na música “In(dig)nação” (álbum Skank, 1993).
A própria canção se apresenta como uma voz indignada ante a paralisia indigna da inação, a paralisia que suspende a dimensão do ato e, consequentemente, não faz laço: “A nossa indignação / É uma mosca sem asas / Não ultrapassa as janelas / De nossas casas”.
Por outro lado, repentinamente, canta, como em um improviso, a dimensão de ato que faz “acontecimentos de nação”, no caso, a brasileira (em contraposição a uma indigna nação), por meio de manifestações de sujeitos e de grupos como a capoeira, o samba, as torcidas organizadas, o morro e outros, que revelam um destino mais digno para posições tidas como indignas, inscrevendo no Outro algum ponto de indignação.
No Seminário 8, Lacan aproxima “estar indignado” à raiz grega da palavra agalma, na acepção de tesouro ou brilho.
Os autores a aproximam de agavos, deste termo ambíguo que é agamai, eu admiro, mas também eu invejo, tenho ciúmes de, que vai dar agazo, suportar com dificuldade, que vai em direção a agaiomai, que quer dizer estar indignado”.
Suportar com dificuldade e dar um lugar digno à indignação é uma possibilidade de romper a moldura da janela e ir além do zunido surdo das moscas sem asas.
Confira “In(dig)nação”:
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