Boletim OCI – 9 – Textos
Henri Kaufmanner (EBP)
kaufmanner@gmail.com
O IX ENAPOL se aproxima.
Estamos a menos de um mês de nosso encontro, e o Boletim OCI reverbera a intensidade deste momento.
À medida que o ENAPOL ganha corpo, a série de textos e elaborações de nossos colegas ressoam a multiplicidade no Uno de nossa Escola.
Neste OCI 9, encontraremos, seja na perspectiva epistêmica do “A priori”, seja nas conexões com a cultura de “Conectando”, o esforço de nossos colegas da América diante deste desafio que se coloca para a psicanálise: um mundo marcado pela segregação, nas tonalidades sombrias resultantes do ódio, cólera e indignação.
Acompanhando os textos, reconhecemos, mais uma vez, a importância da afirmação de que a Escola é um refúgio contra o mal-estar de nosso tempo. Cada autor, a partir de sua relação com a causa analítica, coloca em jogo os instrumentos com os quais opera a partir da ética da psicanálise e do desejo do analista em tempos tão difíceis.
Sigamos então, embalados por Miss Bolivia, vibrando a partir do que se transmite em nossa comunidade e da proximidade contingente que nosso encontro anuncia.
Faço ainda um convite especial àqueles que até então não se decidiram a participar do IX ENAPOL: venham!
SOBRE A IRA E OUTRAS LOUCURAS
Guillermo A. Belaga (EOL)
gbelaga@gmail.com
A ira, uma perturbação que externaliza os espíritos, prepara o corpo para a melancolia e até para a loucura; “a ira é um furor breve” (…) uma das três paixões mais violentas¹.
1. Paixões, Afetos, Emoções
Essa distinção é proposta por J. Lacan com o fim de afirmar a incidência do corpo no inconsciente, preocupado em mostrar a articulação do inconsciente com o corpo.
Por sua vez, J.-A. Miller² sublinhou que “o inconsciente procede do corpo falante”. Nesse sentido, em “Habeas-corpus”³, dirá:
“É essencial apreender um primeiro ponto: o homem, diferentemente do sujeito, tem um corpo. Em segundo lugar, esse corpo é falante. Em terceiro lugar, não é o corpo que fala. Não é o corpo que fala por iniciativa própria, é sempre o homem quem fala com seu corpo. Com é uma preposição cara a Lacan, à qual ele dá seu sentido preciso – a instrumentação. O homem se serve do corpo para falar. A fórmula do corpo falante não é portanto feita para abrir a porta para a fala do corpo. Ela abre a porta ao homem, no que ele se serve do corpo para falar”.
A esse respeito, Lacan, em 1973, em “Televisão”, estabelece uma orientação decisiva quando não empurra, em absoluto, o afeto em direção à emoção, mas, muito pelo contrário, faz uma distinção bem clara dos dois e, ao mesmo tempo, empurra o afeto em direção à paixão, mais precisamente às paixões da alma (a tristeza, o gaio saber, a felicidade, a beatitude, o tédio, e o mau-humor).
Resulta, assim também, numa distinção de suma atualidade: levar o afeto para o lado da emoção seria mais afim às posições do cognitivismo e das “neurociências”.
Ao contrário disso, Lacan propõe a passagem da psicofisiologia à ética, quando prefere o termo tristeza ao da depressão, estabelecendo que não se trata de um estado de ânimo, mas que “é simplesmente uma falta moral (…), um pecado, o que quer dizer uma covardia moral”⁴, conectando essa paixão ao que se conhecia no século IV como a acédia – descrita, nesse sentido, nos tratados da época, como uma combinação dos estados de tristeza, preguiça, fastio e aborrecimento.
Por sua vez, consignava-se que o “tratamento eficaz” indicado para a acédia era a confissão com o “médico de almas”.
Lacan recorre a ela para sublinhar que se trata da posição de gozo, cujo tratamento se daria a partir do dever de bem dizer ou de orientar-se no inconsciente. Também acrescenta que essa covardia pode ser um rechaço do inconsciente e então chega à psicose, que “é o retorno no real do que é rejeitado da linguagem; é a excitação maníaca pela qual esse retorno se faz mortal”. A mania como máxima disjunção entre linguagem e corpo.
A ira, assim como a acédia, era um termo muito familiar na Idade Média. Tratava-se de estados conflitivos no contexto do sistema de pensamento do cristianismo e seus oito pecados capitais: gula, luxúria, avareza, ira, tristitia, acédia, soberba e orgulho.
Em seu comentário em “Televisão”, Lacan também vai mencionar o fastio (ennui), e o mau-humor: “É um pecado, um pedacinho de loucura, ou um verdadeiro toque do real?”
2. A ética do bem-dizer
Lacan, em sua “Alocução sobre as psicoses da criança”⁵, em 1967, em uma intervenção centrada na ética da psicanálise enquanto ética do gozo, afirma que existe uma oposição entre a tristeza e o saber alegre ou gaia ciência.
A respeito disso, Miller explica que, na ética do bem-dizer, trata-se do acordo do significante e do gozo, de sua ressonância. Consiste em cercar, encerrar, no saber, o que se pode dizer.
Assim, a tristeza é um assunto de saber, mas o saber triste é um saber falho, ao lado da impotência para o significante entrar em ressonância com o gozo, de tal maneira que o gozo permanece exterior.
Por outro lado, o saber alegre, ou gaia ciência, ao contrário, admite a extimidade do gozo: trata-se da passagem da impotência ao impossível.
Por último, o analista suporta a paixão da transferência, inclusive frente ao ódio definido como uma das paixões do ser, como uma forma de transferência negativa: nesse caso, pode ser que haja um rechaço, uma paixão negativa com o analista, mas mantendo um interesse pelo inconsciente, e então a análise resulta possível.
O problema se apresenta com a transferência negativa absoluta, quando estamos frente ao duplo rechaço do inconsciente e do analista, como nas paixões comentadas.
Tradução: Ruth Jeunon
Revisão: Paola Salinas
Notas
¹ BURTON, R.: Anatomia da Melancolia: volume II. Curitiba: Ed. UFPR, 2011, p.192.
² N. A.: Intervenção pronunciada por J.-A. Miller no encerramento do Xº Congresso da AMP, “O corpo falante. Sobre o inconsciente no século XXI”, Rio de Janeiro, 25-28 de abril de 2016. Nesta sequência intitulada “De Rio a Barcelona” intervieram também Miquel Bassols e Guy Briole.
³ MILLER, J.-A. “Habeas-corpus”. In: Opção Lacaniana. São Paulo: Eolia. N. 73, 2016.
⁴ LACAN, J. “Televisão”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2003.
⁵ ________ “Alocução sobre as psicoses da criança”. Ibid.
ÓDIO, RACISMO E O DEVIR DO MUNDO
Flávia Cêra (EBP)
flavia.cera@gmail.com
“[…] parece que os povos obedecem agora muito mais às suas paixões do que aos seus interesses”¹.
Como pensar as relações entre ódio e racismo? O primeiro deságua necessariamente no segundo? Laurent retoma Lacan apresentando o laço social fundado em uma rejeição primordial que constitui o ódio: “não é um homem aquele que eu rejeito como tendo um gozo diferente do meu”². Odeia-se, porém, o desconhecido do próprio gozo. Como, então, esse desconhecido se apresenta como diferença reconhecível e ganha um alcance na cultura com consequências que se arrastam por séculos? E ainda: a lógica da exclusão contempla a profusão da violência racista de nossos dias?
Achille Mbembe, em seu livro Crítica da razão negra, apresenta o racismo como a identificação do homem não com aquilo que o torna igual aos outros, mas com aquilo que o distingue deles: “tudo que não é idêntico a mim, é anormal”. É sobre o fundo de uma nomeação europeia que o “negro” passa a existir, e a empresa colonial e civilizadora não deixará de produzir cesuras que precipitarão o lugar do negro como aquele que não é homem. A “razão negra” se constrói aí e
“[…] se consola odiando, manejando o terror, praticando o alterocídio, isto é, constituindo o outro não como semelhante a si mesmo, mas como objeto propriamente ameaçador, do qual é preciso se proteger, desfazer, ou que, simplesmente, é preciso destruir, na impossibilidade de assegurar o seu controle total”³.
Miller diz que o ódio racista é o ódio ao próprio gozo, que, desconhecido, se localiza no outro para poder extirpar essa perturbação opaca que escapa à simbolização⁴. Há um Outro que ameaça minha existência e deve ser excluído. Este, alerta Mbembe, sempre foi um dos paradigmas da política na modernidade.
Algo mudou, as tecnologias do biopoder já não dão conta de explicar as práticas contemporâneas. Por isso, Mbembe acrescenta à biopolítica e à disciplina o necropoder, que ultrapassa a ideia de inclusão e exclusão, de produção da vida, e passa a ter, no seu horizonte, o massacre e o extermínio como solução operante na destituição do Estado como detentor do monopólio da violência e na reconfiguração da guerra com o apagamento das diferenças entre os campos políticos externos e internos⁵. Se havia regras intrínsecas no regime de soberania em que vigorava a biopolítica, se era preciso delimitar o dentro e o fora e se servir de formas jurídicas de exceção, na necropolítica isso não é necessário. O que outrora se validava pelo progresso, de desenvolver o que se considerava subdesenvolvido⁶, circula agora em uma matriz orientada pelo discurso capitalista que privilegia contornos indefinidos. Nesse sentido, podemos verificar no mundo inteiro um esgotamento das políticas de inclusão e disciplina, a crise da imigração e a precarização das relações de trabalho como seus maiores exemplos. Por consequência, a lógica da exclusão tampouco encontraria lugar. Não obstante, constroem-se muros, cercas e toda a sorte de identidade nacional que empurra o racismo para uma política cotidiana autorizada pelo discurso do mestre que manipula um ódio difuso e generalizado anunciando, como destino e sintoma, o que Mbembe nomeia como “devir-negro do mundo”⁷.
O que se apaga nesse cenário é o limite que a palavra é capaz de fazer. O laço sustentado no discurso de ódio é frágil: ele pode facilmente alcançar o ponto em que a palavra se demite, e o campo da violência aparece livre. E à violência disseminada, constantemente, responde-se com a guerra. A psicanálise, contudo, sabe que a paz é uma ilusão, no entanto não deixa de apostar, em cada experiência, e nas bordas do seu impossível, em dar outro destino ao ódio no enlace com a alteridade.
Notas
¹ FREUD, S. “Reflexões para os tempos de guerra e morte”. In: Edição Standard. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago.
² LAURENT, É. “Racismo 2.0”. In: Opção Lacaniana, n. 67, dezembro 2013.
³ MBEMBE, A. Crítica da Razão Negra. São Paulo: N-1 edições, 2018, p. 27.
⁴ MILLER, J.-A. Extimidad. Buenos Aires: Paidós, 2017, p. 43-58.
⁵ MBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo: N-1 edições, 2018.
⁶ LACAN, J. Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
⁷ MBEMBE, A. Op. Cit., p. 20.
DA INDIGNIDADE DO SINTOMA À DIGNIDADE DO SINTHOME
María Hortensia Cárdenas (NEL)
mhcardenas@gmail.com
A indignação é sem mediação
Podemos abordar o tema da indignação a partir de várias perspectivas, e poder-se-ia dizer que aquilo de que se trata é de um afeto insuportável diante de uma afronta, como a injúria que vem do Outro como indigna, que deixa o ser ignorado, denegrido, desalojado, na indiferença, na injustiça. A partir de uma posição subjetiva, a indignação pode ser um obstáculo à dignidade da singularidade. A indignação supõe que se haja perdido a dignidade quando algo da pulsão surge separado do semblante e é o gozo o que aparece acompanhado de angústia.
Mas quando se trata do gozo pulsional de cada um, esbarramos com um impossível de resolver de modo coletivo¹. Os movimentos sociais, públicos ‒ e, nesse ponto, se pode argumentar que a leitura do social é fantasmática ‒ não dizem nada do gozo privado, que é preciso tramitar na experiência analítica.
Do atuar sobre as paixões
Cada um constrói sua estratégia neurótica para defender-se do real, e a indignação está presente desde o ‘vamos’ da demanda de análise, quando a singularidade do sujeito é suprimida ou rechaçada. No curso de uma análise, as paixões têm seu lugar e formam um nó passional analista-analisante com os restos sintomáticos². As paixões atravessam a experiência analítica, levam a marca do insuportável do gozo. Indignação, cólera, certas tristezas, fundamentam-se em uma relação de amor que implica um resto fundamental de rechaço, de ódio.
Como a política do sintoma se mostra na intervenção analítica ou no atuar sobre as paixões?
O que os testemunhos ensinam é que se trata do atuar de um analista, mas, sobretudo, do atuar do analisante. Do lado do analista, alojar da boa maneira, sem paixão do analista – o que Freud chamou de neutralidade do analista, e que Lacan precisou melhor a partir da ética, supondo-o operatório, o desejo do analista. Do lado do analisante, chegar a reconhecer que quem rechaça o mais singular de cada um é o próprio sujeito, não o outro. Em cada caso é a divisão do sujeito contra si mesmo. O ódio a meu próprio gozo do qual estou separado³.
Um percurso analítico iria da indignidade do sintoma à dignidade do sinthome. Em última instância, só há a dignidade do sinthome. Os testemunhos dos AE demonstram como a paixão analítica esteve em jogo e a resolução que encontrou ao final na relação com o analista. Demonstram também que a dignidade do significante não resolve a questão do gozo, porque, para além da dimensão fantasmática com a qual cada um se arranja para sustentar seu Ser, o que realmente dignifica é o Um da diferença incomparável do parlêtre. Eles ensinam que, perante o encontro com Um real e o corpo depurado de seu revestimento fantasmático, pode-se ter a oportunidade de outorgar uma nova dignidade ao sinthome. Isso implica ir do rechaço do gozo do Outro a se ver confrontado com seu próprio gozo, que, até esse momento, sua real dimensão era desconhecida.
Tradução: Ruth Jeunon
Revisão: Paola Salinas
Notas
¹ BASSOLS, M. Una política para erizos y otras herejías psicoanalíticas. Buenos Aires: Grama, 2018. p. 105.
² LAURENT, É. “Violencias y pasiones. Sus tratamientos en la experiencia analítica”. In: Bitácora Lacaniana. n° 5. Buenos Aires: Grama, 2016. p. 22.
³ _____________ “Ana Lydia Santiago pergunta a Éric Laurent”. Vídeo no Boletim OCI 3, disponível em: https://ix.enapol.org/boletim-oci-3/. Acesso em jun. 2019.
A CÓLERA, UM MODO DE GOZO
Edwin Jijena Durán (NEL)
egjijena@hotmail.com
O tema que nos convoca ao trabalho para o IX ENAPOL (“Ódio, Cólera e Indignação”), em particular, tem a ver com esta proposta de trabalho que gira em torno da Cólera e nos remete a duas possíveis referências na obra de Lacan.
No seminário A ética da psicanálise, Lacan interroga sobre o tema da psicologia dos afetos; especificamente se detém na cólera e, além disso, questiona se o que Descartes articula na obra As paixões da alma nos satisfaz plenamente. Ele dirá a respeito disso:
“A hipótese de trabalho que lhes sugiro, a qual seria preciso ver se cola ou não cola, é a que a cólera é certamente uma paixão que se manifesta por meio de tal correlato orgânico ou fisiológico, por meio de tal sentimento mais ou menos hipertônico, e até mesmo elativo, mas que necessita, talvez, como que de uma reação do sujeito a uma decepção, ao fracasso de uma correlação esperada entre uma ordem simbólica e a resposta do real… é quando as cavilhazinhas não entram nos furinhos”¹.
A segunda referência de Lacan se encontra no seminário O desejo e sua interpretação.
“Difícil não perceber que um afeto fundamental como a cólera nada mais é que isto: o real que chega no momento em que armamos uma belíssima trama simbólica, em que tudo vai indo muito bem, a ordem, a lei, nosso mérito e nossa boa vontade. Percebemos, de repente, que os pininhos não entram nos buraquinhos. É esta a origem do afeto da cólera”².
A referência é aos dois registros: na primeira citação, em que se espera uma correlação entre a ordem simbólica e o real e que o simbólico entre em comunhão com o real, e, na segunda, na qual o real interrompe o ordenamento simbólico realizado. Em ambas as situações, a resposta é a mesma, a cólera como resposta diante desse não encaixe da cavilha nos furinhos.
Uma possível leitura integrando os três registros, quer dizer, incluindo o imaginário, o nó borromeano poderia nos levar a pensar que a cólera também pode repercutir na ordem da imagem do falasser, o corpo. Lacan faz referência a isso quando aponta certo correlato orgânico, fisiológico, e então a cólera é um modo de gozo, é um gozo no corpo.
O dado que temos do corpo, no segundo ensino de Lacan, é através da referência à imagem do corpo, o que nos indica em sua articulação entre o Imaginário e Real (“A terceira”, 1974). Então, a falha da integração do Simbólico/ Real, o pino que não entra no buraquinho, repercute também a cólera na desestruturação da imagem do corpo, com os efeitos orgânicos e fisiológicos que menciona e é um modo de gozo sentido no corpo. O gozo da cólera necessita de um corpo como suporte.
Entre o Simbólico e o Real que não se enodam, temos o gozo fálico, o gozo fora do corpo. A cólera, a situamos nesse ponto de calço, mas, em seu efeito de desarticulação ou desenodamento, o pino que não entra no buraquinho, nessa zona se produz, pelo que parece, um gozo desregulado que afeta a imagem corporal, em uma espécie de fragmentação imaginária corporal que também de desenoda.
Uma viagem linda a uma ilha paradisíaca com praias mornas e palmeiras com toda a família presente. Na noite anterior, todos estavam preparados para o grande desfrute – comidas, revistas, câmeras, etc. Ao amanhecer, uma grande tormenta tropical desenoda o simbólico, que não encaixou com a tormenta tropical real nem com os efeitos do mal-estar produzidos na imagem corporal.
Tradução: Glacy Gorski
Revisão: Paola Salinas
Notas
¹ LACAN, J (1959-60). O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1988. p. 129.
² ________. (1958-59) O seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação. Ibid., 2016. p. 160.
GENERALIZAÇÃO DO ÓDIO
Lucíola Freitas de Macêdo (EBP)
luciola.bhe@terra.com.br
Em “A Europa na prova do ódio”¹, Éric Laurent enfatiza a primazia do ódio em relação ao amor, remontando à expulsão primordial freudiana: no princípio de toda e qualquer relação com o Outro, há uma recusa do gozo mau, gozo que o sujeito não reconhece como próprio. Odeia-se no outro as insígnias daquilo que, considerado estranho ao eu, porquanto portador da marca do inumano, foi primordialmente rejeitado.
Ao mandamento cristão “Ama ao próximo como tu mesmo”, Lacan objeta: “como tu mesmo, tu és… aquele a quem odeias em sua demanda de morte, porquanto tu o ignores”². Se, no Seminário 5, Lacan considera as vicissitudes da demanda de morte como paradigma de um gozo ignorado, no Seminário 20 abre uma nova perspectiva de leitura ao postular o outro gozo que, desbordando a medida fálica, se situa do lado feminino das fórmulas da sexuação. Nessa direção, a demanda de morte do obsessivo poderia ser lida como uma defesa em face ao outro gozo.
A partir de seu último ensino, Lacan irá conceber o gozo feminino como o “princípio do regime de gozo como tal”: “o gozo como tal é não-edipiano… é o gozo reduzido ao acontecimento de corpo”³.
Amar o próximo como a si mesmo convoca a vertente paterna enquanto ideal. Diversamente, almar como outra para si mesma designará o gozo que pela via da ex-istência, levará Lacan a interpor “uma face do Outro, a face Deus como suportada pelo gozo feminino”⁴, na medida em que o gozo suplementar “esconde um caráter de êxtase não localizado sobre o órgão”⁵.
A alteridade que uma mulher encarna para o parceiro restará inapreensível pela perspectiva identitária, tanto mais esse gozo desborde a medida fálica, como puro acontecimento de corpo.
A recusa do feminino por parte do parceiro poderá ser experimentada por uma mulher como uma ferida aberta que jamais se estanca⁶, indicando uma perspectiva de investigação da devastação feminina não apenas no âmbito relação mãe-filha, mas sob as injunções do outro gozo nas parcerias amorosas.
Em nome do universal fálico, o neurótico obsessivo poderá obstinar-se na posição de vítima sacrificial da garantia extraída do viril, paralisando-se num impasse do qual não consegue sair: só poderá manifestar seu desejo denegando-o, e, não podendo atingir o Outro, mortifica-se, odiando a si próprio, porquanto ignore que esse outro gozo que entrevê no encontro com o heteros, encarnado pela parceira, lhe concerne.
Torsões entre clínica e política, hoje
Ainda em “Europa na prova do ódio”, Laurent se serve das reformulações do último ensino de Lacan para pensar as diferenças entre os populismos dos anos 1930 e os atuais:
“Essa perspectiva, distinta daquela de Freud, centrada no amor ao pai, reflete a oposição entre os populismos dos anos trinta, verticais… com uma forte doutrina, e os novos populismos apoiados em movimentos horizontais… polimórficos, atomizados, unidos pelo ódio às elites”⁷.
A generalização do ódio, tributária da “segregação ramificada e multiplicadora de barreiras”⁸, não se funda no paradigma do pai edipiano. Ela evoca o pai mítico de “Totem e tabu”. Como exemplo desse estado de coisas, temos certo viés do feminismo contemporâneo e o ódio dirigido ao “macho-branco-heterossexual-de-elite”, que, tal qual o Pai da horda, supostamente gozaria, sem restrições, de todas as mulheres.
Valeria precisar em que medida o feminismo radical se diferencia dos feminismos cunhados sob a égide das sociedades patriarcais e se os ódios identitários respondem à mesma lógica daqueles que se estruturam sob os auspícios da metáfora paterna.
Uma questão se coloca: o ódio dirigido ao “macho-branco-hétero”, ao qual se atribui o estatuto de um Outro não barrado, adviria como uma blindagem em face ao gozo não todo fálico, sendo justo o outro gozo o que também aí se rechaça?
Notas
¹ LAURENT, É. “L’Europe à l’épreuve de la haine I”. In: Lacan Quotidien. n. 821, 24 fev. 2019. Disponível em: https://www.lacanquotidien.fr/blog/wp-content/uploads/2019/03/LQ-822.pdf. Inédito.
² LACAN, J. O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente. RJ: JZE, p. 521.
³ MILLER, J-A. “A orientação lacaniana”. In: O ser e o Um. lição de 2 mar. 2011. (Inédito).
⁴ LACAN, J. O Seminário, livro 20: mais, ainda. Op. Cit., p. 103.
⁵4 LAURENT, É. El psicoanálisis se cura de la transferência? In: Opção Lacaniana, n. 18, 2015, p. 192.
⁶ MENGHI, C. “Una donna, tra vergogna e uno strano pudore”. In: SLP Corriere. mai. 2019.
⁷ LAURENT, É. “L’Europe à l’épreuve de la haine I”. Op. Cit.
⁸ LACAN, J. “Nota sobre o pai”. Opção lacaniana, n. 71, 2015, p. 7.
CÓLERA E ULTRAJE EM RELATOS SELVAGENS
Sobre “Relatos Selvagens”¹ de Damián Szifron
Beatriz García Moreno (NEL)
btgarciam@gmail.com
Romina e Ariel chegam a sua festa de casamento de braços dados. Ela com seu vestido branco e seu ramalhete, ele com seu fraque. Estão presentes seus familiares, os amigos da noiva e os do noivo. Tudo é alegria até que Ariel cumprimenta com cumplicidade uma colega de trabalho. Esse momento é captado por Romina, que, de imediato, suspeita de sua infidelidade. Telefona do celular, e no momento em que começam a dançar, ela o interpela. Ele lhe confessa que sim, esteve com ela. Romina entra em cólera, sai sem rumo do salão e se encontra com o vazio no terraço, do qual é resgatada com amabilidade por um cozinheiro. Frente a esse gesto, Romina o beija e faz sexo com ele. O marido os descobre e entra em choque. Ela lhe grita que não descansará até tirar dele tudo o que possui.
Esse fragmento da história final de Relatos selvagens indica um caminho para pensar a cólera em relação ao ultraje. O ultraje, diz Lacan, se apresenta quando se cruza o limite daquilo que se considerava infranqueável, o mais íntimo. Romina entra em cólera quando, ao descobrir que há outra a lhe usurpar o lugar, percebe que seu lugar como objeto de desejo de Ariel, com quem acaba de se casar, vacila. Em sua cólera, Romina realiza ações irracionais que apontam a despossuir Ariel de tudo, inclusive submete a rival a um jogo, do qual esta sai ferida.
Miller, em “Uma clínica da posição feminina”², diferencia o que significa ter e perder bens para um homem e para uma mulher. O homem se identifica com seus bens, enquanto a mulher encontra uma forma de fazer semblante com eles, mas, ao se sentir ultrajada, pode entrar em cólera e realizar ações nas quais não lhe importa perder o que lhe vinha dando consistência, pois seu propósito principal é atacar ao Outro em sua completude, converter-se em seu furo. A posição de ser o falo para o Outro lhe possibilita depreciar o ter deste e reduzir todo ter a semblante.
Quando Lacan se detém em Medeia e em Madeleine, a esposa de Gide, se refere a como cada uma, a seu tempo, frente à constatação de já não ser o objeto de desejo do amado, destrói o que a ele mais dói: Medeia mata os filhos e a amante de Jasão, ao passo que Madeleine destrói as cartas de Gide.
Tradução: Flávia Machado Seidinger Leibovitz
Revisão: Paola Salinas
Notas
¹ SZIFRON, D. Relatos Selvagens. Filme. Argentina, 2014.
² MILELR, J.-A. “Uma clínica de la posición feminina”. In: Introducción a la clínica lacaniana. Barcelona: ELP, p. 283-294.
O ESTRANGEIRO EM CASA
Sobre “Um limite entre nós”¹ de Denzel Washington
Maria Laura Errecarte (EOL)
ml-errecarte@hotmail.com
O interessantíssimo filme do ano de 2016, dirigido e protagonizado por Denzel Washington, nos faz mergulhar em cheio no tema deste apaixonado IX ENAPOL.
O pano de fundo é o racismo nos Estados Unidos dos anos 50 e uma cerca, que Troy, o protagonista, não sabendo ao certo o porquê, deve e tenta construir sob o insistente imperativo de sua queridíssima e kantiana esposa Rose.
“Fences”² não está no singular, mas sim no plural. Faz alusão a diversas cercas de diferentes materialidades. Para Troy, há uma cerca impossível de construir e exige que seu filho herde tal responsabilidade. Proximidade e cola ignoradas de subjetividades estão em jogo, tanto entre pai e filho quanto em seu casamento. Ódio-paixão³, tal qual na banda de Moebius, se torcem em rivalidades e agressão imaginária apostando na constituição egóica. “Odeia-se a maneira particular que o Outro goza, justamente porque não é a própria maneira ou porque a subtrai. Mas este Outro está em mim, ou seja, a raiz do racismo é o ódio ao próprio gozo”⁴. É o próprio racismo de Troy que toma seu corpo e não lhe permite localizar o próprio gozo; comanda então o insuportável do gozo do Outro e a resposta é o ódio ao estrangeiro.
Mas do ódio vamos à cólera, quando em certa trama estabelecida irrompe um real. O discurso do baseball é um marco compartilhado em que Troy mostra sua graça. Mas há um momento em que esse sentido se rompe, irrompe um real fora do discurso, sendo a cólera e, em seguida, a violência como seu efeito, a que toma a cena como a única forma de responder.
Por outro lado, situamos a indignação do lado de Rose. Tendo seu universo desmoronado com a chegada de uma filha produto de uma infidelidade de seu marido, Rose pode cernir certa repetição própria e consegue encontrar uma saída para além do lugar de legisladora que havia encarnado. Localiza sua própria satisfação singular como aquilo que a torna algalmática e toma essa dignidade seu valor⁵. Enuncia ao seu parceiro: “Cuidarei de seu bebê por você. Já não poderá passar os pecados de pai para filho. Essa menina terá mãe, mas você não tem mulher”. Localiza algo em seu laço sintomático que permite dar um novo passo: ela queria uma casa onde cantar, e é justamente uma canção que transmite e imprime, até o final, uma nova marca, outra música à sua família.
Tradução: Letícia Lopez
Revisão: Glacy Gorsky
Notas
¹ WASHINGTON, D. Um limite entre nós. Filme. EUA, 2016.
² N. R.: “Fences”, título original do filme.
³ N. T.: No espanhol odio-enamoramiento, optamos pela tradução ódio-paixão, sem contudo relembrar a referência ao amódio, que o espanhol parece indicar.
⁴ N. A.: Argumento IX ENAPOL. Disponível em: https://ix.enapol.org/argumento/
⁵ MORAGA, P. “Pinceladas de dignidad”, disponível em: http://ampblog2006.blogspot.com/2018/08/pinceladas-de-dignidad-normal-0-false.html
O PODER DAS PALAVRAS E OS IMPASSES DO FANATISMO
Sobre “Como curar um fanático”¹ de Amós Oz
Antonio Alberto P. de Almeida (Associado ao CLIN-a)
antonioalbertoalmeida@gmail.com
O escritor israelense Amós Oz afirma, nas conferências publicadas no livro Como curar um fanático, que o crescimento do fanatismo é um dos impasses do século XXI. Entre várias leituras possíveis, destacam-se, aqui, os seus apontamentos sobre as palavras de onde se extrai uma possível interseção com a psicanálise.
Oz considera que, no fanatismo, há a nomeação de uma certeza, a qual divide, assim, os que a seguem e os que não. Ele destaca a incidência disso em diferentes gradações de mal – pois há graus de radicalismo e consequências distintas. Essa proposição se aproxima de Laurent², que aponta a questão atual existente em torno da ressonância dos discursos, sobretudo dos que matam. Lacan³ destaca que o discurso pode vir a ter um caráter hipnótico devido ao efeito de sugestão.
O escritor aponta que o fanático é um falso altruísta, pois, em nome do Bem, tenta impor a sua visão aos outros – e, em casos extremos, pretende eliminar os que não a seguem. Assim, há um uso da palavra que ele diz que é sentimental – e, com base em Laia⁴, podemos apontar que vai da emoção à efusão. Diante disso, Oz critica quem diz que a solução para tal impasse é o amor (uso que ele indica ser banal), a compaixão e a fraternidade e alerta para os riscos de que o antifanático se torne, ele mesmo, um fanático.
Oz extrai da tradição que existe na cultura judaica⁵ em relação às palavras e da sua experiência como escritor a ideia de que a curiosidade, o humor, a argumentatividade e o ceticismo são respostas possíveis ao fanatismo. Não se trata de uma esperança de cura definitiva, pois ele afirma, tal como Freud⁶, que há uma tendência à agressividade e ao radicalismo no ser humano, mas que esses elementos podem servir para que as certezas absolutas sejam questionadas e, assim, possam surgir novas soluções de compromisso com base no respeito mútuo às diferenças.
A proposição de Lacan⁷ sobre a palavra vazia intersecciona com o pensamento de Oz. Nesse Seminário, a partir de uma leitura sobre efeito de poesia, ele apresenta uma nova concepção para esse termo. Em resumo, ao contrário da palavra plena, esta substitui o duplo sentido por uma significação, o que traz a dimensão de singularidade por suportar algo que não pretende ser absoluto.
Diante disso, se questiona qual é o uso que a concepção de “palavra vazia” pode ter no campo da ação lacaniana, da cultura, ante os impasses do fanatismo. Como nos lembra Lacan⁸, os psicanalistas podem se servir, no âmbito dos dizeres, quando convém, daquilo que os poetas previamente calcularam.
Notas
¹ OZ, A. Como curar um fanático. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
² LAURENT, É. “Discursos y goces malos“. In. Revista Freudiana. Nº 85. p. 35-49. Barcelona: RBA Libros, 2019.
³ LACAN, J. “Rumo a um significante novo”. In: Opção Lacaniana. Nº 22. São Paulo: Eólia. Agosto de 1998.
⁴ LAIA, S. “Análise e interpretação de uma ilusão coletiva: os discursos, a ação lacaniana a partir de maio de 68 e suas consequências”. In. Almanque Online. Nº 04. Disponível em
⁵ N. A.: Ver o livro de Amós Oz Os judeus e as palavras (Companhia das Letras, 2015), em caso de interesse em aprofundamento.
⁶ FREUD, S. “O Mal-Estar na Civilização” In. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
⁷ LACAN, J. Ibid.
⁸ ________ “O aturdito.” In. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2003.
ÓDIO DE MORTE
Sobre “Crônica de uma morte anunciada”¹ de Gabriel García Márquez
Leticia A. Acevedo (EOL)
acevedo.acevedo23@gmail.com
Esse romance foi publicado em 1981 e conta uma história baseada em um acontecimento real ocorrido em 1951. O conflito está marcado pela importância que tem a virgindade nessa sociedade em que a religião é seu centro, e o crime, se bem seja castigado com a prisão, justifica-se em nome da honra manchada.
García Márquez é um escritor que não busca suscitar emoções, mas expressá-las, razão pela qual isso nos permite tocar a geografía imaginária de Macondo, um lugar isolado do mundo na costa do Caribe, onde a realidade e o mito se confundem. “Os mitos estão a serviço de circunscrever o gozo ignorado, indizível; remetem às origens nas quais sexualidade e morte se entrelaçam de modo indistinguível”².
É um romance que não perdeu a validade porque mostra o imperativo de gozo na cena da civilização, com sua cara feroz e obscena. É uma crítica contra a moral social conservadora e as tradições dessa época, que se tocam como em uma banda de moebius com temas atuais. A violência refletida no assassinato, no machismo, na indiferença e na hipocrisia.
Desde o começo da narrativa, anuncia-se que a morte acontecerá. A fatalidade domina todo o relato: o crime é tão público que já não se pode detê-lo.
O ódio e a indignação, paixões das quais nos ocuparemos este ano no ENAPOL, também expressas no relato, desvelam como levam a degradar o sujeto da palavra à condição de mero dejeto. Nesse caso, Santiago Nasar, reduzido a objeto, é assassinado de modo cruel, impossível de se imaginar, pelos gêmeos Vicario. Pergunto a mim mesma: procuravam vingar a honra perdida de sua irmã, Angela Vicario, antes que se casasse? Foi uma eleição forçada?
O ódio, tal como Lacan o lê, é uma paixão do ser. O ódio, tal como o amor, é uma via na qual o ser se afirma negando o ser do outro.
García Márquez demonstra que a vida está repleta de acasos, contingências; nada é previsível nela. Sua prosa desembaraçada, precisa e colada ao terreno, torna verossímil o que parece inacreditável, inventando uma tensão narrativa onde já não há argumento, virando o tempo ao avesso para que revele suas verdades, deixando uma dúvida no ar que acabará por destruir os protagonistas desse drama. Dúvida, enigma que torna impossível recompor com tantos fragmentos diferentes o espelho quebrado da memória.
A crônica como pedaços de real que refletem o gozo ignorado, indizível, que enlaça sexualidade e morte.
Tradução: Maria Rita Guimarães
Revisão: Paola Salinas
Notas
¹ MÁRQUEZ, G. G. Crônica de uma morte anunciada. Record: São Paulo, 1981.
² MALUENDA, E. “Enunciados de lo imposible”. Aula do Seminário do Departamento Enlaces. 1º de abril de 2019. Inédito.
O EROTISMO DO ÓDIO
Sobre “Fazer o ódio”¹ de José Gabriel Báñez
Christian Ríos (EOL)
christianriosar@yahoo.com.ar
Hacer el odio é o nome que Gabriel Báñez deu, por volta de 1985, a uma de seus mais sórdidos romances.
Desde as primeiras páginas, diferentes marcas de escrita nos situam na cidade de La Plata: a morte da girafa do zoológico, o incêndio do Teatro Argentino, o aroma das tílias em novembro, a faculdade de Ciências Exatas e o bairro Hipódromo, entre outras.
Essas marcas, que Báñez utiliza para ancorar a trama na singularidade de um lugar, também funcionam como sinais temporais. Ao nos encontrarmos com elas, mergulhamos em uma das épocas mais obscuras de nosso país: os anos de chumbo da ditadura militar.
Talvez o ponto que distinga esse romance de outros relatos daquela época seja que, nele, não encontramos nenhum estereótipo. Damián Daussen, seu narrador, não condiz com a típica figura do repressor; ele é, melhor dizendo, alguém comum e ordinário, mais um na multidão.
Ex-seminarista, servidor da UNLP, Daussen faz o ódio em cada ato de sua vida cotidiana, por exemplo, quando – ainda criança – atravessava com um pau os peixes do lago do Parque Saavedra, quando retira a trava e libera o tambor de sua Browning, ou em sua indiferença diante da desaparição de um conhecido e, evidentemente, no rechaço de qualquer palavra de amor de Raquel.
Daussen se pergunta, em diversas ocasiões, se é antissemita. A pergunta é legítima, já que seu ódio aos judeus não está amalgamado em uma forte ideologia. É mais propriamente, como ele diz, “algo instintivo”.
Esse romance nos ensina do que se trata quando se faz o ódio. Ainda que o racismo seja uma de suas manifestações sociais, Daussen nos demonstra que o fundamental não se localiza na dimensão da ideologia; esta vem mais recobrir outra coisa. O ódio é o rechaço do gozo do Outro, o Outro do sujeito, e, portanto, é o rechaço ao próprio gozo. Daussen sabe disso muito bem:
“Eu nunca insisti no meu ódio aos judeus. As judias sempre me excitaram, tanto quanto me aterrorizaram (…) hoje vejo isso, era uma espécie de terror erótico. Creio que nunca pude superá-lo. Macías deve ter razão: estarei circuncidado como todos eles”².
Tradução: Laureci Nunes
Revisão: Flávia Machado Seidinger Leibovitz
Notas
¹ BÁÑEZ, J. G. Hacer el odio. Buenos Aires: Editorial Almagesto, 1995.
² _______ Ibid., p. 86.
UMA LENTE QUE DIGNIFICA
Sobre “A testemunha”¹ de Jesús Abad Colorado
Gladys Martínez (NEL)
gladysmartinezord@yahoo.com
Para Jesús Abad Colorado, “as fotografias são pulsações da alma”². Testemunha dos horrores e das crueldades de um conflito armado que fez a Colômbia sangrar durante cinquenta anos, sua lente esteve alerta e vigilante para não deixar apagar, silenciar nem exterminar uma história que não se queria que fosse visível, tampouco escrita.
O apetite voraz do olho desatado pelo bombardeio de imagens que diariamente nos inundam é algo que Abad Colorado objeta com sua fotografia. Não poderia se tratar de fotografias impudicas, exibicionistas ou sensacionalistas, pois não concebe seu trabalho sem ética. No lugar de obturar, cada uma de suas fotos é uma hiância de vida que merece ser nomeada, recordada, retirada do aniquilamento de uma cifra estatística. Cada vida e cada morte são únicas e sua lente dá voz e rosto ao silenciado, rompido, desaparecido, deslocado, massacrado, aniquilado.
Essas fotografias, recolhidas em uma exibição de arte nomeada A testemunha, constituem um projeto de memória a partir da tessitura dessas peças soltas que sacodem, despertam e interpretam. Com um respeito único pelo enquadre, ângulo e cor, que dignificam aquilo que foi tocado pela ignomínia, cada fotografia, pulsação da alma indignada, toma corpo e voz para fazer ressoar bem longe, e, contundentemente, o que não tem nome nem perdão. Mas também para que nos tornemos testemunhas do saber-fazer de cada camponês colombiano que colhe vida como alimento para todos nesse território, onde se pode – ou não – enterrar seus mortos. A fim de nos tornar testemunhas desse saber-fazer daquele que resiste, com dignidade e com os restos, ele retoma a vida a partir do que foi perdido e recomeça.
Eu me pergunto se esse saber-fazer com a indignação, como posição subjetiva, é o que apela à responsabilidade subjetiva daquele que já não pode não ter sido visto.
Abad Colorado não vela, não tampona nem o espelho nem a janela estilhaçada por balas, em que uma menina encontra um buraco possível para cavar um sorriso não-anônimo. Cada pulsação de sua lente pulveriza, perfura, estremece o consistente aparelho de ódio, que se tornou discurso do Mestre durante tantos anos, para que se escreva o que não cessava de não afligir nem de ser dito.
Tradução: Glacy Gorski
Revisão: Paola Salinas
Notas
¹ COLORADO, J. A. A testemunha. Memórias do conflito armado colombiano na lente e na voz de Jesús Abad Colorado. Exposição. Recuperado em: http://patrimoniocultural.bogota.unal.edu.co/eventos/article/el-testigo-memorias-del-conflicto-armado-colombiano-en-el-lente-y-la-voz-de-jesus-abad-colorado.ht
² N. A.: Entrevista para o jornal El Tiempo. Disponível em: https://www.eltiempo.com/cultura/arte-y-teatro/entrevista-a-jesus-abad-colorado-sobre-su-exposicion-de-fotografias-310262
AI WEIWEI, SEGREGAÇÃO E REFUGIADOS
Sobre “Human Flow”¹ de Ai Weiwei
Janaina de Paula Costa (Associada ao CLIN-a)
janaina-pcosta@hotmail.com
A crise dos refugiados é um dos nomes do mal-estar na civilização contemporânea – é também uma das causas à qual se dedica o artista e ativista chinês Ai Weiwei.
Em 2015, após uma viagem à ilha grega de Lesbos, arriscada via de entrada para a Europa, o artista iniciou uma pesquisa que o levou a percorrer, durante um ano, 23 países e 40 campos de refugiados. O documentário Human Flow – Não Existe Lar se Não Há para Onde Ir, de 2017, é fruto desse trabalho.
Se em 1989, o ano da queda do Muro de Berlim, 11 países tinham suas fronteiras cercadas, no ano de lançamento do documentário de Weiwei, esse número já havia crescido para 70.
A edição pretende dar voz e alguma visibilidade para a crise dos refugiados, acompanhando-os naquela que pode ser uma travessia tão perigosa a ponto de não se completar. A sensibilidade do diretor é capaz de capturar olhares, cores, sorrisos, entonações de vozes, “tempestades” de areia, o horror e as mais sutis dificuldades do percurso – como montar uma barraca. Ao ver essas pessoas sem rumo, ele dirá: “é muito chocante. Ao mesmo tempo, a resposta europeia é igualmente chocante, pois eles não fazem muito para ajudar”².
Conforme a indicação lacaniana, o caminho percorrido por Weiwei, um artista à altura das causas de sua época, parece atestar que a segregação é a origem da fraternidade, pelo menos, no seu caso, da fraternidade à uma causa. O artista, filho do poeta Ai Qing, fala da experiência do exílio, ainda na infância, quando o pai foi levado a campos de trabalhos forçados na China comunista.
A segregação, em sua dimensão mais íntima com o ódio, é o que convoca ao banimento do outro, à aniquilação da pluralidade dos modos de gozo – reconhecidos como aquilo que há de mais estrangeiro e ameaçador? Segrega-se o gozo.
Weiwei destaca menos o caráter estético de suas obras do que a dimensão ética que atravessa seu trabalho. Aprendemos com Lacan que a relação do artista com sua época “é sempre contraditória. É sempre contra as normas reinantes […], é sempre contra a corrente que a arte tenta operar novamente seu milagre”³.
A arte, com seu apreço pelos restos e escombros, seria, assim, uma possibilidade de dar contorno e visibilidade ao que da segregação retorna?
Notas
¹ WEIWEI, A. Human Flow – Não Existe Lar se Não Há para Onde Ir. Filme. 2017.
² Cf.: https://revistacult.uol.com.br/home/ai-weiwei-human-flow/.
³ LACAN, J. O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 172.
OS BARULHOS METAFÍSICOS
Sobre “O Silencieiro”¹, de Antonio di Benedetto
Jorge Chamorro (EOL)
chamorro@datamarkets.com.ar
O personagem de quem nos ocupamos apresenta arestas particulares que nos permitirão observar o ódio, a cólera e a indignação supostos em muitos de seus atos.
Trata-se de um homem comum afetado pelos barulhos que seus congêneres fazem, provocando-lhe reações de muita agressão. Não os suporta.
No entanto, diz: “Não, não haverá violência. Não gritarei com eles para que parem e que vão embora; que me permitam o sono, que ao menos liberem a noite para mim. Não. Serei legalista, preciso e implacável”².
Trata-se de uma escolha similar à do analisante quando “escolhe” a transferência negativa como substituição da paixão do ódio.
Nosso silencieiro, seguindo o caminho da lei, faz a denúncia na delegacia, que não a toma com contundência: “Estarão trabalhando…”³, lhe diz o delegado. Resposta que nos evoca uma frase de Osvaldo Lamborghini, quando define a Argentina como “a terra dos chistes”⁴.
Nos termos de nossos analisantes, a fórmula seria: “bem… é um modo de dizer”. Um caminho sutil para não sucumbir ao peso das palavras pronunciadas.
Em um trem de alta velocidade no Japão, o guarda fez desligar o computador de um amigo que estava escutando música. Ao perguntar-lhe pelas razões, respondeu-lhe que poderia incomodar aos outros. Isso mostra que o Japão não é a terra dos chistes, onde o Estado representa o silencieiro sem que ele o peça.
Para nós, que vivemos em países livres e democráticos, quando o Estado exerce sua autoridade, não deixamos de senti-lo como restrição da liberdade. Pelo visto, as pessoas daquelas terras não compartilham nossa concepção de democracia.
À primeira vez que fui a Caracas, em 1980, um taxista a quem repreendi por atravessar os sinais vermelhos em alta velocidade me respondeu com uma piada que não pareceu tão descabida: “Cara, este é um país democrático, cada um faz o que quer”.
O silencieiro segue buscando seu caminho, muda-se de casa, mas, não podendo escapar dos barulhos, considera a possibilidade de matar e, por fim, se dá um tiro na orelha. Fica surdo, mas ainda assim continua escutando vozes. Planeja um incêndio na oficina que faz barulho, mas não se tratará de produzi-lo, e sim ensaiar com o personagem a escrever um livro. Seria sua forma de “saber fazer”.
Passamos, assim, das queixas ao Outro, à escrita que lhe inspiram os barulhos metafísicos que alteram seu ser.
Tradução: Flávia Machado Seidinger Leibovitz
Revisão: Paola Salinas
Notas
¹ BENEDETTO di, A. O silencieiro. São Paulo: Editora Globo, 2006.
² _______________ Ibid.
³ _______________ Ibid.
⁴ LAMBORGHINI, O. Novelas y cuentos II. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 2003. (trad. livre). p. 37.
A PASSO DE TARTARUGA: DA INDIFERENÇA À INDIGNAÇÃO
Sobre “O passo da tartaruga”¹ de Enrique García Meza
Carolina Puchet Dutrénit (NEL)
caropuchet@gmail.com
O passo da tartaruga é um documentário que fala sobre os quarenta e três estudantes desaparecidos em Iguala-Guerrero em 26 de setembro de 2014, evento conhecido como o Caso Ayotzinapa. Sem dúvida, esse acontecimento foi, para o México, um divisor de águas em sua história: colocou o país no centro dos olhares ao redor do mundo devido a um fato que indignou muita gente. Alguns saíram para as ruas a movimentar seus corpos para dizer: já basta! O lema “não estamos todos, faltam-nos 43” serviu como bandeira dessa indignação.
O documentário realizado por Enrique García Meza mostra-nos, mais além dos fatos terríveis que aconteceram naquela tarde-noite e de sua investigação, que alguns jovens camponeses decidiram estudar na Escola Normal Rural Raúl Isidro Burgos porque ali encontraram um lugar que os acolhesse “como uma mãe”, que lhes desse a oportunidade de serem outra coisa além de “empregados de um cacique”. Jovens que encontram, na Escola Normal, uma forma de dignificar o que são e aquilo a que querem se dedicar: tornar-se professores que se preocupam com as crianças às quais vão ensinar, que se preocupam em saber o que acontece em sua comunidade.
Os companheiros desses jovens foram os que desapareceram em setembro de 2014, por subirem em dois caminhões que, agora se sabe, estavam carregados com milhões de pesos em droga. Foi aí então que se revelou aos mexicanos o pouco que vale a vida de uma pessoa em relação à droga e ao poder. Sabíamos, pela canção de Pedro Infante, que “a vida não vale nada”, e esse fato nos ensinou que é assim: vivemos em um território que é um cemitério, cheio de cadáveres de desaparecidos. Durante anos, temos sido indiferentes frente a isso e frente ao sofrimento das famílias que o viveram na própria carne.
Ayotzinapa mostrou nossa indiferença frente ao outro, nosso rechaço em entender que isso que acontece com o outro tem a ver comigo, e, pela primeira vez, sentimo-nos indignados. A passo de tartaruga, os mexicanos, começamos a nos ver uns aos outros, indignados, fartos de viver com um véu, enganando-nos. A verdade histórica foi rechaçada para começar a construir outra verdade, essa que dignifica cada estudante em sua singularidade, aspecto que esse excelente documentário nos ensina.
Se bem a indignação tenha sido um primeiro passo para ir mais além da indiferença, a partir da psicanálise, sabemos que a indignação faz referência ao singular. “Faltam-nos 43” ressoou em cada um de maneira singular, mas permitiu que nos reunamos a nos perguntar com os outros, a escutar aos outros, para não nos esquecermos novamente.
Tradução: Maria Rita Guimarães
Revisão: Paola Salinas
Notas
¹ MEZA, H. G. O passo da tartaruga. Documentário. México, 2018. Disponível em: https://www.ambulante.org/documentales/ayotzinapa-paso-la-tortuga/, acesso em jul. 2019.
SENSATEZ E MISANTROPIA
Sobre “Ode ao ódio”¹ de Ariel Magnus
Silvina Sanmartino (EOL)
silvinasm@yahoo.com
Ode ao ódio, antologia realizada por Ariel Magnus, que aceitou fazer parte desta conversação. Resulta provocador que, em nossa época, se encontre um elogio ao ódio. Em seu prólogo, Magnus lança a ideia de que o ódio é a única paixão que suscita interesse. Deixa claro como o ódio, desde a Antiguidade até nossos dias, ocupa um lugar na literatura.
A conversação
Silvina Sanmartino: Como podemos pensar o ódio que afeta o laço social em larga escala?
Ariel Magnus: Creio que o misantropo e a segregação em grande escala sempre existiram, talvez até em proporções similares ao nível de globalização de cada momento histórico. É precisamente isto que a antologia tenta mostrar a partir de um ponto de vista literário: isso sempre existiu, quase poderíamos dizer que somos isso, seres capazes de odiar a si mesmos com todas as forças de seu ser.
S. S.: Existe um ponto no prólogo onde você diz que “Ninguém é mais alheio ao pensamento misantropo, ou seja, da sensatez, do que aquele que se dedica à estúpida tarefa de aniquilar seus congêneres”. Você pode discorrer sobre essa junção do pensamento misantropo e da sensatez?
AM: Certamente deve haver períodos mais misantropos que outros. Digo que me custa imaginar algum período no qual a misantropia não tenha os representantes que a mantêm viva, época após época.
A sensatez do pensamento misantropo radica no fato de que todo pensamento nasce como tal uma vez que nega a si mesmo. Somente chegando a esse extremo é que ele pode começar com sua tarefa; do contrário, está sempre a caminho do absurdo, que, em minha opinião, não deveria ser um final, mas sim o princípio. Mesmo que logo o caminho se veja como muito parecido outra vez, há uma maturidade irrefutável: já sabemos o limite. Nesse sentido, entendo a misantropia como um exercício do pensamento, um acaloramento.
Por outro lado, tinha um problema com esse livro, do que fazer com os discursos segregacionistas, autênticos fomentadores da violência e dos genocídios. O misantropo, muito ao contrário do criminoso, é alguém que se fecha em seu ódio e, quanto menos contato tenha com seus semelhantes, melhor. É um ódio completamente passivo que, a maioria das vezes, se manifesta no seu contrário: amabilidade, discrição, conformismo…
Da sublimação literária às massivas manifestações de ódio das quais somos testemunhas, entendo que esta é a novidade da época. O ódio passa a ser a paixão que afeta o laço social em grande escala.
Tradução: Glacy Gonzales Gorski
Revisão: Paola Salinas
Notas
¹ MAGNUS, A. (compilador). Oda al odio. Buenos Aires: Adriana Hidalgo editora. 2015.
O ÓDIO E O INSULTO
Sobre “O ódio”¹ de Mathieu Kassovitz
Adolfo Ruiz (NEL)
adol_ruiz@hotmail.com
Diante do espelho, Vinz descarrega seu ódio em um Outro imaginado que lhe fala e cuja palavra lhe desperta um rechaço total: “Falas comigo, pedaço de merda²? Não quero que te dirijas a mim!”, grita a esse outro ao mesmo tempo que, sem o saber, se dirige a algo seu. Logo estende seu braço e, fazendo com sua mão um gesto como uma pistola, aponta para esse Outro insuportável e… Essa cena marca, de alguma maneira, o eixo de O ódio, filme que acompanha por 20 horas a vida de três jovens franceses – Vinz, de família judia, Said, de família árabe e Hubert, um negro de família africana – habitantes dos subúrbios de Paris, quando há uma noite de violentos distúrbios dos quais Vinz faz parte ativamente.
O filme nos mostra como a linguagem, em Vinz, se faz veículo do ódio através do insulto. Em sua dificuldade de se articular ao Outro, no qual já lhes é impossível crer, os jovens produzem soluções em impasse³. No caso de Vinz, passa pela destituição do Outro no lugar da palavra: “não tens direito de falar comigo”. Os ‘adolescentes do real’ “são rapidamente perseguidos pelas palavras do outro”⁴. E a resposta vem pela via do insulto, esse “esforço supremo do significante para chegar a dizer o que é o outro como objeto a” e “deste modo agarrar o outro, isolá-lo e atravessá-lo em seu ser aí, em seu Dasein, na merda que é”⁵.
Mas o insulto, enquanto “última palavra do diálogo”⁶, poderia ser a barreira final contra a explosão da violência que o tempo todo ameaça Vinz.
O ódio, para além de assinalar à sociedade “que se afunda enquanto não para de se dizer: até agora, tudo vai bem”⁷, chama à reflexão sobre as paixões, sobre o ódio, que, como o ilustra de maneira magistral a cena⁸ de Vinz no espelho, é o ódio desde Outro que é Outro em mim.
Tradução: Ruth Jeunon
Revisão: Paola Salinas
Notas
¹ KASSOVITZ, M. O ódio. Filme. França, 1995.
² N. T.: No original, cabrón, insulto que pode significar: desgraçado, sacana, “pentelho”, maldito, “seu merda”. A tradução depende da região e da entonação e, devido à referência feita à fala de J.-A. Miller, optamos por manter ‘merda’, que parece se adequar melhor ao contexto.
³ Cfr. LACADÉE, P. “Del insulto al caos de la violencia ciega”. Disponível em: http://ampblog2006.blogspot.com/. Acesso em jul. 2019.
⁴ ______________ Ibid.
⁵ MILLER, J.-A. El banquete de los analistas. Paidós: Buenos Aires, 2000. p.105.
⁶ LACAN, J., “O aturdito”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 489.
⁷ N. A.: Palavras do narrador ao final do filme.
⁸ N. A.: A cena pode ser vista em: https://www.youtube.com/watch?v=3ws8xiNhwek.
CARTA AO PAI, UMA LEITURA
Sobre “Carta ao pai”i de Franz Kafka
Ordália A. Junqueira (EBP)
psico.rdom@terra.com.br
“No que concerne ao outro, o ódio é uma posição fundamental, que deve ser trabalhada, civilizada, sublimada”i.
Dessa entrevista de Laurent, destaco a Carta ao pai, de Kafka (1919). Em “O Moisés de Michelangelo”, Freudi diz que o que nos prende à obra artística é a intenção do artista, visando “despertar em nós a mesma atitude emocional que nele produziu o ímpeto de criar”. Descobrindo a intenção do artista, tem-se que ser capaz de interpretá-la para, depois, saber por que se foi afetado. Laurent interpreta:
“Kafka, sujeito eminentemente psicótico, foi, sem dúvida, o inventor de um mundo em que o pai não tem mais lugar. Cartas ao pai testemunha o que quer dizer, precisamente, a foraclusão radical: a estraneidade total do pai em relação ao sujeito”i.
Kafka pede água. O pai levanta, tira-o da cama, arrasta-o para fora, deixando-o na varanda. “Anos depois, eu ainda sofria com a torturante idéia de que o homem gigantesco, meu pai, que podia vir, sem motivo, me tirar da cama, me levar à varanda e de que eu era, para ele, um nada”. Kafka nunca pode relacionar esse ato de pedir água com o terror de ser arrastado para fora. “A partir daquele momento eu me tornei obediente, mas fiquei internamente lesado”.
Kafka divide o mundo em três: no primeiro ele era o escravo vivendo sob leis que não conseguia corresponder; no segundo o pai se ocupava em dar ordens e se irritar; e, no terceiro, as pessoas viviam felizes, livres de ordens e obediência. Confessa que vivia “imerso na vergonha”: ou seguia as leis do pai, ou não podia obedecer por não ter sua destreza, sendo essa sua vergonha maior. Laurent interpreta: “o que Kafka descobre, e descreve de maneira esplêndida, é que, uma vez ausente a figura do pai, do NP, para sustentar o universal, o que há é uma punição terrível, sempre presente, singular”.
Savoir faire
Pai tirano, com ameaças lhe interditou a palavra. Kafka foi adquirindo um falar gaguejante, entrecortado, até silenciar: “Já não podia pensar nem falar. E isso repercutiu em minha vida… Às vezes imagino um mapa mundi aberto e você estendido transversalmente sobre ele”.
Porém, na arte da escrita, Kafka nos afeta, e sua obra “privada” se estendeu a “um mundo em que o pai não tem mais lugar!”
Notas
¹ KAFKA, F. Carta ao pai. Companhia das Letras: São Paulo
² LAURENT, É. (2019) Vídeo de 04/2019 sobre o IX ENAPOL 2019-SP. Disponível em: https://ix.enapol.org/boletim-oci-6/
³ FREUD, S. (1914). “O Moisés de Michelangelo”. O.P.C.S.F. RJ: Imago, V. XXIII, 1980.
⁴ LAURENT, É. Ibid.
MISS BOLIVIA
Por Fabiola Ramon
A cantora, compositora, psicóloga, produtora e DJ argentina Miss Bolivia é uma expressiva representante do “empoderamento da mulher” no campo social, fruto dos movimentos identitários que respondem aos processos de segregação da civilização contemporânea e que têm, nas questões de gênero, um dos seus pontos centrais.
“Paren de Matarnos” (álbum Pantera, 2017) é o título da canção-apelo na qual Miss Bolivia usa de sua voz de artista para denunciar a violência dirigida às mulheres cotidianamente. Uma violência não apenas discursiva, mas também que se dá em ato, como o feminicídio, termo que caracteriza “homicídio cometido contra mulheres, motivado por violência doméstica ou discriminação de gênero”.
Esse ponto nos instiga a pensar sobre a íntima relação entre violência, mulher e feminino. A psicanálise entra para essa discussão a partir da problemática do gozo no ser falante: do gozo fálico e do gozo não todo fálico; ou gozo feminino, que se opõe ao gozo fálico, e que afeta o corpo de cada um, independentemente da anatomia ou do gênero, podendo ser experimentado como estranho, gozo Outro, difícil de localizar e de nomear e que, em certa medida, causa horror e ódio. Um ódio que, para ser expulso de si, se dirige ao outro. A figura da mulher, assim como a das crianças e dos loucos, se aproxima dessa posição feminina.
J.-A. Miller, no texto “Mérefemme”, nos ajuda a compreender essa aproximação entre a mulher e o feminino:
“E a mulher, o que é a mulher no inconsciente? […] A mulher é aquela que é o Outro que não tem, o Outro do não-ter, o Outro do déficit, da falta, o Outro que encarna a ferida da castração, o Outro atingido em sua potência. A mulher é o Outro diminuído, o Outro que sofre e, por esse viés, igualmente o Outro que obedece, que se queixa, que reivindica, o Outro da pobreza, do desnudamento, da miséria, o Outro do qual se rouba, com o qual se falta, que se vende, no qual se bate, que se mata…. o Outro submetido, e que não tem nada a dar, exceto sua falta e os signos de sua falta”1.
Confira Miss Bolivia em “Paren de Matarnos”:
Notas
¹ MILLER, J.- A. (2015). “Mèrefemme”. In: La Cause du Désir: Revue de psychanalyse, 89, p. 115-122.
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